Ilusionismos
Há séculos, reflexões e escritos procuram estabelecer algum parâmetro
que permita dizer com certeza que aquilo que vemos, pensamos ou
sentimos existe
Em 1980, o essencial Carlos Drummond de Andrade, já com 78 anos
de idade, publicou o livro "A Paixão Medida" e nele inseriu uma
provocação poética chamada "A Suposta Existência". Nas duas estrofes
iniciais está o desafio: "Como é o lugar / quando ninguém passa por
ele? / Existem as coisas / sem ser vistas? / O interior do apartamento
desabitado, / a pinça esquecida na gaveta, / os eucaliptos à noite no
caminho três
vezes deserto, / a formiga sob a terra no domingo, / os mortos, um
minuto /
depois de sepultados, / nós, sozinhos / no quarto sem espelho?".
Ora, uma das mais antigas indagações humanas diz respeito à concretude e
à existência efetiva do real; há séculos, reflexões e escritos
procuram,
tanto no Ocidente quanto no Oriente, estabelecer algum parâmetro que
permita dizer com certeza que aquilo que vemos, experimentamos, pensamos
ou sentimos existe de fato, não sendo apenas pura imaginação delirante
ou ficção passageira. É clássica uma pequena história, de muitos e
diferentes modos recontada, que diz ter um sábio chinês adormecido e
sonhado que era uma borboleta. No sonho, a borboleta também dorme e
sonha ser um sábio chinês. Quando acordam quem acorda? Quem acorda
transformado em quê? Quem era quem ao despertar? Qual era a realidade
e qual era o sonho?
Pode parecer perda de tempo refletir sobre coisas assim, mas a
construção de referências confiáveis para qualquer ação ou pensamento é
exatamente a base sobre a qual se assentam as elaborações da arte, da
filosofia,
da religião e da ciência. Por isso, no século 18, o bispo e filósofo
irlandês
George Berkeley também procurava uma referência confiável, especialmente
para sustentar sua defesa extremada da supremacia do espírito sobre a
matéria. Encontrou-a em um axioma latino (embora pudesse ser
uma máxima publicitária atual): "Esse est percipere aut percipi" (ser é
perceber e ser percebido). O que não é percebido não existe, ou seja, o
que não
é notado e distinguido perde efetividade.
Em 1944, o pensador francês Jean-Paul Sartre escreveu "Entre Quatro
Paredes", uma de suas mais provocadoras peças de teatro. Encenada com
adaptações diversas pelo mundo afora, tem um enredo básico: três pessoas
que não se conhecem, sendo duas mulheres (a insolente Inês e a fútil
Estelle) e um homem (o acovardado Garcin), morrem e, para surpresa
completa, vão parar em um cômodo fechado, sem janelas, sem espelhos e
quase
sem móveis; ali, queiram ou não, terão de conviver por tempo indefinido
e,
é claro, de suportar-se obrigatória e reciprocamente.
Naquele lugar, o amanhã é sempre a eternidade da presença detestável
de outras pessoas com as quais não se quer estar, mas não há como escapar
dessa condição (como acontece com muita gente em férias forçadas, em
famílias impostas, em casamentos cínicos, em empregos enfadonhos, em
lazeres alienantes ou em feriados prolongados).
É nessa peça que se encontra o famoso e nem sempre incorreto vaticínio:
"O inferno são os outros". Metáfora da vida contemporânea (já naquela
época), a peça inquieta profundamente o mundo das plastificadas
convenções sociais, das muitas e tolas vaidades estéticas, das perigosas
elasticidades morais e, como complemento sólido, é um desesperador
passeio pelo
reino das hipocrisias, imposturas e dissimulações das quais somos
capazes
na breve existência. Há uma cena marcante para demonstrar a parceria
entre a futilidade e o desprezo intencional: como não havia espelhos no
cômodo -para a aflição da vaidosa Estelle-, esta precisa que as duas
pessoas digam a ela como está a sua aparência. Nada dizem. Calam e a
torturam com o silêncio, impedindo que saiba por outros como está ela
mesma.
A ressurreição eventual do pensamento de Berkeley vem sendo feita de
modo hiperbólico, exagerado, exaltado. Não é raro nos depararmos com
aqueles que sucumbem aos apelos sombrios oriundos de algumas mídias
que proclamam a importância de sermos vitimados por celebridades
provisórias, famas instantâneas e personalidades velozmente dissolúveis.
Parece que a única regra é ser percebido.
Riquezas aparentes, misérias reais...
MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo.
Um comentário:
Por que some da minha vida? Desaparece assim sem deixar vestígios, Emerson???
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