domingo, 23 de abril de 2023

 Máximo de Felicidade no Máximo de Lucidez

O que é a sabedoria? É a felicidade na verdade, ou «a alegria que nasce da verdade». Esta é a expressão que Santo Agostinho utiliza para definir a beatitude, a vida verdadeiramente feliz, em oposição ás nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factícias ou ilusórias. Sou sensível ao facto de que é a mesma palavra beatitude que Espinoza retomará, bem mais tarde, para designar a felicidade do sábio, a felicidade que não é a recompensa da virtude mas a própria virtude... a beatitude é a felicidade do sábio, em oposição às felicidades que nós, que não somos sábios, conhecemos comumente, ou, digamos, às nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas vezes por ilusões, diversão ou má-fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos... não sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispensá-los. Mas a sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade. 
A sabedoria? É uma felicidade verdadeira ou uma verdade feliz. Não façamos disso um absoluto, porém. Podemos ser mais ou menos sábios, do mesmo modo que podemos ser mais ou menos loucos. Digamos que a sabedoria aponta para uma direcção: a do máximo de felicidade no máximo de lucidez. 

André Compte-Sponville, in 'A Felicidade desesperadamente.'

sexta-feira, 21 de abril de 2023

A falta de cultura ética da nossa civilização.

Creio que o exagero da atitude puramente intelectual, orientando, muitas vezes, a nossa educação, em ordem exclusiva ao real e à prática, contribuiu para pôr em perigo os valores éticos. Não penso propriamente nos perigos que o progresso técnico trouxe directamente aos homens, mas antes no excesso e confusão de considerações humanas recíprocas, assentes num pensamento essencialmente orientado pelos interesses práticos que vem embotando as relações humanas.

O aperfeiçoamento moral e estético é um objectivo a que a arte, mais do que a ciência, deve dedicar os seus esforços. É certo que a compreensão do próximo é de grande importância. Essa compreensão, porém, só pode ser fecunda quando acompanhada do sentimento de que é preciso saber compartilhar a alegria e a dor. Cultivar estes importantes motores de acção é o que compete à religião, depois de libertada da superstição. Nesse sentido, a religião toma um papel importante na educação, papel este que só em casos raros e pouco sistematicamente se tem tomado em consideração.
O terrível problema magno da situação política mundial é devido em grande parte àquela falta da nossa civilização. Sem «cultura ética» , não há salvação para os homens.

Albert Einstein, in 'Como Vejo o Mundo'

O verdadeiro é simples

O verdadeiro, o bom, o inigualável é simples e é sempre idêntico a si mesmo, seja qual for a forma sob a qual ocorre. Pelo contrário, o erro, sobre o qual sempre recairá a censura, é de uma extrema diversidade, diferente em si mesmo, em luta não apenas contra o verdadeiro e bom mas também consigo mesmo, sempre em contradição consigo próprio. É por isso que em todas as literaturas as expressões de censura hão-de ser sempre muito mais que as palavras destinadas aos louvores.


(Johann Wolfgang von Goethe).  

As máximas e as interpretações.

Quem quer discutir ou contradizer máximas, devia ser capaz de as observar com toda a clareza e, depois, ser capaz de manter a discussão dentro dos limites dessa clareza, para não se dar o caso de andar a lutar com falsas imagens da sua própria invenção.

A obscuridade de certas máximas é meramente relativa; nem tudo o que é luminoso para quem pratica o género tem que ser tornado distinto perante o ouvinte.
Há muito ditos dos antigos que cuidamos de repetir constantemente e que tinham uma significação muito diferente daquela que depois se pretendeu atribuir-lhes.
Quem quiser acusar um autor de ser obscuro devia começar por observar a sua própria interioridade para verificar se encontra nela clareza suficiente. Na penumbra, um texto muito claro torna-se ilegível.

Johann Wolfgang von Goethe, in "Máximas e Reflexões"

O receio do sofrimento.

Todos os sofrimentos que nos cercam, é-nos necessário sofrê-los igualmente. Todos nós, não temos um corpo, mas um crescimento, e esse conduz-nos através de todas as dores, seja sob que forma for. Do mesmo modo que a criança, através de todos os estádios da vida, se desenvolve até à velhice e até à morte (e cada estádio parece no fundo inacessível ao precedente, quer seja desejado ou receado), do mesmo modo nos desenvolvemos (não menos solidários da humanidade do que de nós próprios) através de todos os sofrimentos deste mundo. Para a justiça não há, nesta ordem de coisas, lugar algum, não mais do que para o receio dos sofrimentos ou para a interpretação do sofrimento como um mérito.


Franz Kafka, in "Os Aforismos de Zurau.

 

Enfrentar-se a Si Próprio


Ódio da introspecção activa. Explicações da nossa alma, tais como: ontem eu estava assim e assado, por esta ou por aquela razão; hoje estou assim e assado, por qualquer outra razão. Não é verdade, nem por esta razão nem por aquela razão, e por isso também nem assim nem assado.
Enfrentar-se a si próprio calmamente, sem precipitações, viver como se tem de viver, não andar à caça do próprio rabo como o cão.
Adormeci nos arbustos. Um barulho acordou-me. Encontrei um livro nas minhas mãos, que tinha estado a ler. Deitei-o fora e levantei-me de um salto. Passava pouco do meio-dia; em frente da colina em que eu estava estendia-se uma grande planura com aldeias e lagos e sebes todas iguais, altas, que pareciam feitas de junco. Pus as mãos nas ancas, examinei tudo com o olhar, e ao mesmo tempo escutei o barulho.

Franz Kafka, in 'Diário (09 Dez 1913).

Os Patos de Ruy Barbosa

Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
- Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, diz:
"- Dotô, eu levo ou deixo os pato?

Ruy Barbosa.

Reinvenção

A vida

só é possível reinventada.

Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas. . .
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas de ilusionismo...
– mais nada.

Mas a vida, a vida,
a vida,
a vida só é possível reinventada.

Vem a lua, vem,
retira as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços cheios da tua Figura.

Tudo mentira!
Mentirada lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcança...

Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço que além do tempo me leva.
Só nas trevas fico:
recebida e dada.

Porque a vida, a vida,
a vida,a vida
só é possível reinventada.

Cecília Meireles in Flor de poemas

domingo, 16 de abril de 2023

A cruz de Giz!

 Eu sou uma criada. Eu tive um romance

com um homem que era da SA.
Um dia, antes de ir
ele me mostrou, sorrindo, como fazem
para pegar os insatisfeitos.
Com um giz tirado do bolso do casaco
ele fez uma pequena cruz na palma da mão.
Ele contou que assim, e vestido à paisana
anda pelas repartições do trabalho
onde os empregados fazem fila e xingam
e xinga junto com eles, e fazendo isso
em sinal de aprovação e solidariedade
dá um tapinha nas costas do homem que xinga
e este, marcado com a cruz branca
é apanhado pela SA. Nós rimos com isso.
Andei com ele um ano, então descobri
que ele havia retirado dinheiro
da minha caderneta de poupança.
Havia dito que a guardaria para mim
pois os tempos eram incertos.
Quando lhe tomei satisfações, ele jurou
que suas intenções eram honestas. Dizendo isso
pôs a mão em meu ombro para me acalmar.
Eu corri, aterrorizada. Em casa,
olhei minhas costas no espelho, para ver
se não havia uma cruz branca.

Autor: Bertolt Brecht (1898-1956)