quinta-feira, 5 de março de 2015

Os Pseudo-Sábios

Os verdadeiros sábios perguntam como se comporta dada coisa em si mesma e na sua relação com outras coisas, sem se preocuparem com a utilidade, ou seja, com a aplicação no domínio do já conhecido ou no domínio daquilo que é necessário à vida. Há outros espíritos, gente bastante diferente, que, sendo mais agudos, mais virados para a vida, mais experimentados e familiarizados com a técnica, tratam imediatamente de encontrar as aplicações. 

Os pseudo-sábios procuram apenas retirar tão depressa quanto possível algum proveito pessoal das novas descobertas, tratando de obter uma glória vã, seja pela tentativa de dar continuidade ou alargamento à descoberta em causa, seja pela introdução de correcções, ou até por uma simples anexação pessoal, por exemplo, afetando grandes preocupações em relação ao assunto. O carácter sempre prematuro desses comportamentos prejudica a verdadeira ciência, traz-lhe maior incerteza e confusão, e atrofia-lhe manifestamente aquilo que ela pode produzir de mais belo, isto é, o seu florescimento prático. 

Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões'

Igualdade não é Liberdade

Todos os homens são iguais em sociedade. Nenhuma sociedade se pode fundamentar noutra coisa que não seja a noção de igualdade. Acima de tudo não pode fundamentar-se no conceito de liberdade. A igualdade é qualquer coisa que quero encontrar na sociedade, ao passo que a liberdade, nomeadamente a liberdade moral de me dispor à subordinação, transporto-a comigo. 

A sociedade que me acolhe tem portanto que me dizer: «É teu dever ser igual a todos nós». E não pode acrescentar mais que isto: «Desejamos que tu, com toda a convicção, de tua livre e racional vontade, renuncies aos teus privilégios». 
O nosso único passe de mágica consiste no facto de prescindirmos da nossa existência para podermos existir. 
A mais elevada finalidade da sociedade é consequência das vantagens que assegura a cada um. Cada um sacrifica racionalmente a essa consequência uma grande quantidade de coisas. A sociedade, portanto, muito mais. Por causa da dita consequência, a vantagem pontual de cada membro da sociedade anda perto de se reduzir a nada. 

Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões' 

O Tele-Lixo

Se a única coisa que oferecerem às pessoas for tele-lixo e omitirem que existem outras coisas, elas acreditarão que não existe mais nada para lá do lixo. Nestes momentos, a audiência é a rainha e por causa dela é lícito uma pessoa até matar a avó. Os meios de comunicação têm grande parte da responsabilidade nisto, embora seja necessário perguntar quem move os seus fios. Por detrás há sempre um banco ou um governo. Um jornal independente? Uma rádio livre? Uma televisão objectiva? Isso não existe. Essa mistura, o tele-lixo e os meios de comunicação dependentes, provoca que a sociedade esteja gravemente doente. 


José Saramago, in 'El Diario Montanés (2006)'

Estamos Neuróticos

Faz sentido que se esteja a enviar para o espaço uma sonda para explorar Plutão enquanto aqui as pessoas morrem de fome? Estamos neuróticos. Não só existe desigualdade na distribuição da riqueza como também na satisfação das necessidades básicas. Não nos orientamos por um sentido de racionalidade mínima. A Terra está rodeada de milhares de satélites, podemos ter em casa cem canais de televisão, mas para que nos serve isto neste mundo onde tantos morrem? É uma neurose colectiva, as pessoas já não sabem o que é que lhes é essencial para a sua felicidade. 


José Saramago, in 'Zero Hora (1997)' 

A Sociedade é um Sistema de Egoísmos Maleáveis

A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Como homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como indivíduo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens; e, porque se parece, agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual, em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão-somente que ser-lhes útil e agradável. Para estar na defensiva ou na ofensiva, tem ele que ver claramente o que os outros realmente são e o que realmente fazem, e não o que deveriam ser ou o que seria bom que fizessem. Para lhes ser útil ou agradável, tem que consultar simplesmente a sua mera natureza de homens. 
A exacerbação, em qualquer homem, de um ou o outro destes elementos leva à ruína integral desse homem, e, portanto, à própria frustração do intuito do elemento predominante, que, como é parte do homem, cai com a queda dele. Um indivíduo que conduza a sua vida em linhas de uma moral altíssima e pura acabará por ser ultrajado por toda a gente - até pelos indivíduos que, sendo também morais, o são com menos altura e pureza. E o despeito, a amargura, a desilusão, que corroem a natureza moral, serão os resultados da sua experiência. Mas também um indivíduo, que conduza a sua vida em linhas de um embuste constante, acabará, ou na cadeia, onde há pouco que intrujar, ou por se tornar suspeito a todos e por isso já não poder intrujar ninguém. 

Fernando Pessoa, in 'Os Preceitos Práticos em Geral e os de Henry Ford em Particular'

O Universo é o Sonho de um Sonhador Infinito

1. Não conhecemos senão as nossas sensações. O universo é pois um simples conceito nosso. 

2. O universo porém — ao contrário de e em contraste com, as nossas fantasias e os nossos sonhos — revela, ao ser examinado, que tem uma ordem, que é regido por regras sem excepção a que chamamos leis. 

3. À parte isso, o universo, ou grande parte dele, é um «conceito» comum a todos os que são constituídos como nós: isto é, é um conceito do espírito humano. 
4. O universo é considerado objectivo, real — por isso e pela própria constituição dos nossos sentidos. 
5. Como objectivo, o universo é pois o conceito de um espírito infinito, único que pode sonhar de modo a criar. O universo é o sonho de um sonhador infinito e omnipotente. 
6. Como cada um de nós, ao vê-lo, ouvi-lo, etc., cria o universo, esse espírito infinito existe em todos nós. 
7. Como cada um de nós é parte do universo, esse espírito infinito, ao mesmo tempo que existe em nós, cria-nos a nós. Somos distintos e indistintos dele. 
8. A «Causa imanente», como é definida, tem que, ao criar, criar infinitamente. Em si mesma é infinita como uma, extra-numericamente; nos seres é infinita como inúmera, numericamente. Num caso é o indivisível, no outro infinitamente divisível. As almas são pois em número infinito. 
9. Tudo o que é criado é infinito, pois a Causa Infinita não pode criar senão infinito. Por isso tudo material, se tudo de natureza oposta à Causa Infinita, é infinitamente divisível e multiplicável (eternidade do tempo, infinidade do espaço). Só pode criar finitos em número infinito. Por isso tudo espiritual, isto é, não-espacial, como é da natureza da Causa, é indivisível. É portanto imortal. 

Fernando Pessoa, ' Textos Filosóficos' 

quarta-feira, 4 de março de 2015


"Todos os que desfrutam acreditam que na árvore o que importa é o fruto, quando na verdade o que importa é a semente: eis a diferença entre os que desfrutam e os que crêem.”
Friedrich Nietzsche
“O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto – não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar?”
— Slavoj Žižek, “O circulo de giz de Jerusalém”.