quarta-feira, 31 de março de 2010

Por quê?
É que meu coração, em meio às delícias,
De uma lembrança ciumenta constantemente oprimido…
Indiferente á felicidade presente, vai procurar tormentos….
No futuro e no passado.

Alex Dumas

ÁLVARO DE CAMPOS

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido,
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso, e foi afinal o melhor de mim, é que nem os Deuses fazem viver…
Se em certa altura
Tivesse voltado para esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também….

POSE / ENGENHEIROS

quinta-feira, 25 de março de 2010

A Soberania da Alma

A alma sabe que as verdadeiras riquezas não se encontram onde nós as amontoamos: é a alma que nós devemos encher, não o cofre! Àquela devemos nós conceder o domínio sobre tudo, atribuir a posse da natureza inteira de modo a que os seus limites coincidam com o oriente e o ocaso, a que a alma, identicamente aos deuses, tudo possua, olhando soberanamente do alto os ricos e as suas riquezas – esses ricos a quem menos alegria proporciona o que têm do que tristeza lhes dá o que aos outros pertence! Quando se eleva a tais alturas, a alma passa a cuidar do corpo (esse mal necessário!), não como amigo fiel, mas apenas como tutor, sem se submeter à vontade de quem está sob sua tutela.
Ninguém pode simultaneamente ser livre e escravo do corpo: para já não falar de outras tiranias que o excessivo cuidado com ele nos impõe, a soberania do corpo tem exigências que são autênticos caprichos. A alma desprende-se dele ora com serenidade, ora de firme propósito – busca a sua saída sem se importar com a sorte dessa pobre coisa que para aí fica! Nós não ligamos importância aos pêlos da barba ou aos cabelos que acabámos de cortar; do mesmo modo, à nossa alma divina, ao preparar-se para abandonar o corpo, de nada importa a sorte dada ao seu invólucro – se o fogo o consome, se a terra o cobre ou as feras o despedaçam; para ela, isso tem tanta importância como para o recém-nascido a placenta.

Séneca, in ‘Cartas a Lucílio’

NINGUÉM PERMANECE SATISFEITO COM O QUE TEM.

Ninguém permanece satisfeito com o que tem, olhando para o que é dos outros; é por isso que nos iramos até contra os deuses quando alguém nos ultrapassa, esquecidos dos homens que ficam para trás; e, quando há poucos homens para invejar, aqueles que seguem atrás de nós são invejosos terríveis. Mas o homem é tão mesquinho que, mesmo tendo recebido muito, considera-se injuriado se pudesse ter recebido mais. (…) Sobretudo, agradece aquilo que recebeste; aguarda pelo restante e alegra-te por não estares ainda satisfeito: é um prazer haver algo por que esperar. Venceste todos os homens: alegra-te por seres o primeiro no coração do teu amigo; foste vencido por muitos: considera quantos homens estão atrás de ti, mais do que quantos estão à tua frente. Queres saber qual é o teu maior vício? Fazes mal as contas: valorizas demasiado o que te oferecem, mas desvalorizas o que tens.
Séneca, in ‘Da Ira’

COM ÁGUA PELO PESCOÇO.

“Procuraste a carga mais pesada" – diz Nietzche no- encontra-te a ti mesmo. No grande mosaico em que cada pedra é um dia, uma dor, um sofrimento, uma experiência, pouca coisa parece formar tão bem um desenho coerente quanto a opera magna da descoberta do mundo pela revelação do descobridor. Não se trata de um calembur intelectual ou de um enigma para pessoas cultas, mas da constatação de um sentido para esse conjunto de coisas que jamais deixamos de acreditar que obedecem a uma coerência. A clareza que exigimos para examinar o que a esfinge da vida propõe todo o tempo é mais do que simples objetividade é resposta. A intuição pura de Nietzche percebe que a carga só é pesada porque não nos encontramos momento a momento, preferindo esperar um instante de redenção, após o qual nada será como antes. A descoberta fundamental, no entanto, não é uma culminância, é um processo. Em carta de 1930, Hermann Hesse encaminha o assunto de maneira mais inspirada. “As sabedorias e possibilidades de salvação não estão ai para serem ensinadas e também não para assunto de conversa, senão para aqueles a quem a água já chegou ao pescoço”. Não é um tema para ser meditado na Semana Santa, mas uma realidade a ser percebida quando o homem se dá conta do que significa perceber, e das implicações que isso certamente tem em sua vida. A palavra salvação está suficientemente comprometida com um dilúvio de afirmações desencontradas, para merecer algum crédito. Melhor é falar em conhecimento, a abordagem de alguma coisa que não conhecíamos anteriormente. Quando se faz disso um passatempo, uma ocupação de pessoas pretensamente inteligentes, resta muito pouco a descobrir. Aquele “desenho coerente” que podemos encontrar no mosaico da vida está intimamente ligado com o que somos. Jorge Luiz Borges tem uma pequena história que usa a mesma analogia: um pintor tenta condensar num imenso painel o mundo, e ao fim do trabalho, quando se distancia para observar o conjunto, descobre que desenhou o próprio rosto. Seria mascarar a realidade dizer que existe um preparo para essas descobertas, qualquer coisa como uma iniciação. Quando a “água já chegou ao pescoço” de alguém, isto é, quando todas as ilusões foram gastas e nem mesmo a desilusão (essa manifestação vaidosa do cansado) permanece, há como que um vazio profundamente criativo. Esse é o ponto, e tudo que se pode dizer dele é quea idéia de fazer alguma coisa, de prosseguir segundo um método, morre ali. A carga mais pesada de que falava Nietzche deixa de existir. Nada disso, como em geral todo o resto, é definitivo e estável. Se o velho Adão recobra o fôlego e tenta uma classificação inteligente, não há vazio nenhum na medida em que há alguém tagarelando. A linha de pensamento a que estamos habituados tem uma porção de objeções a opor, a essa altura: em que consiste tudo isso? Para quê? Por que complicar as coisas? Por que não fazer uma exposição simples e metódica do assunto? “Segundo a minha experiência – afirma Hermann Hesse, numa de sua cartas – o elemento mais irritante e destruidor dos homens é aquele impulso baseado na preguiça de pensar e na necessidade de permanecer em paz, que leva para o coletivo, para a explicação racional, para a vulgaridade subordinada à dogmática rigorosa, seja ela política ou religiosa”. O hábito precisa ser entendido, em seu mecanismo implacável, para que seja possível vislumbrar um pouco além do cotidiano. As exposições racionais e metódicas valem para uma infinidade de circunstâncias e são de imensa importância na vida, mas nos casos em que o racionalismo e o método transformaram-se em biombos, escondendo a realidade em nome da busca dessa realidade, tudo muda de figura. A técnica, a cultura, o conhecimento acumulado são pouco ágeis e sutis para um empreendimento tão delicado quanto à abordagem do real, nesse “fio da navalha” que é o momento presente. Não há retórica na conclusão de que essas descobertas só podem acontecer agora – não ontem, nem dentro em pouco. O fio do momento que passa (e que ainda não passou) existe entre duas vertentes e é o único pedaço do tempo que conhecemos de fato. O que as escolas e correntes dizem disso pode ser interessante, mas desvia atenção do assunto e “verbaliza” ainda mais o pensamento. Não há nada que a erudição possa fazer para ajudar, no caso, mesmo porque ela costuma ser prolixa, principalmente quando usada como alavanca nos truques de auto-afirmação. Essa é a carga mais pesada porque exige resistência e leveza, que freqüentemente se excluem. É preciso resistir ao peso dos hábitos mentais, do costume social, dos modismos de todo tipo, sendo ao mesmo tempo flexível como um florete, e penetrante como ele. Há preconceitos demais cercando o simples e o fundamental em nossa vida comum. Temos o espírito vergado para direções eterminadas e quanto mais antiga a pressão, pior a luta para identificar o desvio. Não se trata de corrigir, mas de identificar. A isso seria possível chamar de “revolução mágica”, se a expressão não fosse muito publicitária: o conhecimento modifica em profundidade. São João Evangelista disse isso de um modo, Freud de outro. Os preconceitos que cercam o simples e o fundamental são gerados pela ignorância. Não pela falta de dados acumulados – que isso qualquer computador pode fazer e nem por isso é sábio -, mas pelo desconhecimento do emaranhado de causa e efeito em que vivemos, em meio ao qual pensamos ser perfeitamente lógicos e racionais."

Luiz Carlos Lisboa

NOITE

Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é fantástica.

Carlos Drummond de Andrade

para aliviar meu fardo (charles bukowski)

" você pode não acreditar nisto,
mas há pessoas que passam pela vida
com muito pouca fricção de angústia.

elas se vestem bem, dormem bem.
elas estão contentes com sua família.
com a vida.
elas são imperturbáveis e
frequentemente se sentem muito bem.

e quando elas morrem
é uma morte fácil,
normalmente durante o sono.

você pode não acreditar nisto,
mas tais pessoas existem.
mas eu não sou nenhuma delas.
oh não, eu não sou nenhuma delas.

eu não estou nem mesmo
próximo de ser uma delas.
mas elas estão lá... "

(charles bukowski).
irremediável.

querer te preservar
proteger tua lembrança
manter viva tua presença
como uma frágil vela acesa
tremulando sob o vento forte
que logo trará a tormenta
sabendo que nada que se faça
jamais será outra vez como antes
sentimento que perdeu o foco
um navio vagando à deriva
nuvens que turvam os céus
pois nada que se tente poderá
salvar o que nunca existiu.
 dani weber

ÁPHIOS

QUEM NOS FEZ TÃO BONS, AO PONTO DE CRER QUE HÁ SERES INFERIOR A NÓS ???

terça-feira, 23 de março de 2010

O PEQUENO PRINCIPE

"Que planeta engraçado!", pensou então. "É completamente seco, pontudo e salgado. E os homens não têm imaginação. Repetem o que a gente diz... No meu planeta eu tinha uma flor; e era sempre ela que falava primeiro."

Mas aconteceu que o pequeno príncipe, tendo andado muito tempo pelas areias, pelas rochas e pela neve, descobriu, enfim, uma estrada. E as estradas vão todas em direção aos homens.

- Bom dia! - disse ele.

Era um jardim cheio de rosas.

- Bom dia! - disseram as rosas.

Ele as contemplou. Eram todas iguais à sua flor.

- Quem sois? - perguntou ele espantado.

- Somos as rosas - responderam elas.

- Ah! - exclamou o principezinho...

E ele se sentiu profundamente infeliz. Sua flor lhe havia dito que ele era a única de sua espécie em todo o Universo. E eis que havia cinco mil, iguaizinhas, num só jardim!

"Ela teria se envergonhado", pensou ele, "se visse isto... Começaria a tossir, simularia morrer, para escapar ao ridículo. E eu seria obrigado a fingir que cuidava dela; porque senão, só para me humilhar, ela seria bem capaz de morrer de verdade..."

Depois, refletiu ainda: "Eu me julgava rico por ter uma flor única, e possuo apenas uma rosa comum. Uma rosa e três vulcões que não passam do meu joelho, estando um, talvez, extinto para sempre. Isso não faz de mim um príncipe muito poderoso..."

E, deitado na relva, ele chorou.


E foi então que apareceu a raposa:

- Bom dia - disse a raposa.

- Bom dia - respondeu educadamente o pequeno príncipe, olhando a sua volta, nada viu.

- Eu estou aqui - disse a voz, debaixo da macieira...

- Quem és tu? - Perguntou o principezinho. - Tu és bem bonita...

- Sou uma raposa - disse a raposa.

- Vem brincar comigo - propôs ele. - Estou tão triste...

-Eu não posso brincar contigo - disse a raposa. - Não me cativaram ainda.

- Ah! Desculpa - disse o principezinho.

Mas, após refletir, acrescentou:

- Que quer dizer "cativar"?

- Tu não és daqui - disse a raposa. - Que procuras?

- Procuro os homens - disse o pequeno príncipe. - Que quer dizer "cativar"?

- Os homens - disse a raposa - têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante. Tu procuras galinhas?

- Não - disse o príncipe. - Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?

- É algo quase sempre esquecido - disse a raposa. Significa "criar laços"...

- Criar laços?

- Exatamente - disse a raposa. - Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...

- Começo a compreender - disse o pequeno príncipe. - Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...

- É possível - disse a raposa. - Vê-se tanta coisa na Terra...

- Oh! Não foi na Terra - disse o principezinho.

- A raposa pareceu intrigada:

- Num outro planeta?

- Sim.

- Há caçadores nesse planeta?

- Não.

- Que bom! E galinhas?

- Também não.

- Nada é perfeito - suspirou a raposa.

( SAINT EXUPÉRY ).
A Filosofia pode auxiliar uma pessoa a ser feliz?

Leia o que pensa o filósofo francês André Comte-Sponville.

Filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento. Em que medida isso pode nos aproximar da felicidade? Ficando mais perto da verdade, nós nos libertamos de várias ilusões e esperanças tolas. Isso nos ajuda a amar a vida mais do que amar a felicidade, a verdade mais do que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança. Os maiores mestres são, a meu ver, Epicuro (de Samos, filósofo grego dos séculos IV e III a.C.), (Michel) Montaigne (filósofo francês do século XVI) e (Baruch) Spinoza (filósofo holandês do século XVII). Quanto a mim, já me expliquei longamente em meu Tratado do Desespero e da Beatitude e, de maneira mais resumida, em Felicidade, Desesperadamente.
Tudo depende do que se entende por felicidade. Se você busca uma alegria contínua e soberana, ou mesmo a ausência total de sofrimento e angústia, certamente nunca será feliz. "Toda vida é sofrimento", dizia Buda. E tinha razão. A felicidade, se a entendemos como uma alegria completa, é apenas um sonho, que nos separa do contentamento verdadeiro. Em busca da felicidade absoluta, nós nos proibimos de viver as felicidades relativas e nos tornamos infelizes. Se, ao contrário, você entender como felicidade o fato de não ser infeliz ou simplesmente de poder desfrutar algumas alegrias, a felicidade não é impossível. E você será feliz somente por não ser triste. À exceção, claro, nos momentos mais difíceis da vida.
Cícero.

"É preciso escolher homens firmes, sólidos e constantes; mas a especie é rara e é difícil conhecê-los antes de
experimentá-los. Ora, esta experiência só poderá ser feita dentro da amizade. Assim, a amizade precederá o julgamento; tornará, pois, impossível a experiência. É próprio de um homem prudente conter o primeiro ímpeto de seu afeto, como o de um coche, que usamos, e experimentar os amigos, como se experimenta um cavalo novo, afim de conhecer seu carater
por todas as faces. Comumente um pouco de ouro basta para mostrar como é frágil a amizade de alguns; outros, que puderam resistir a um pouco de ouro, sucumbem diante de uma soma considerável. Se encontrarmos quem prefira a amizade ao dinheiro, onde achar aquele que não prefira as honras, as
magistraturas, os comandos, o poder, a autoridade? Colocai de um lado todos esses bens, do outro os direitos da amizade, e contai os que se declaram por estes. A natureza humana é fraca para resistir à tentação do poder e, se para obtê-lo, precisarmos sacrificar um amigo, acreditamos que a falta se justifica pela grandeza do interesse.
Muito dificilmente encontraremos amigos verdadeiros entre os homens que se ocupam dos negócios públicos ou que procuram honras. Onde está o homem que prefere à sua, a elevação de um amigo? E sem ir muito longe, porque a companhia na desgraça parece à maioria dos homens, um fardo pesado e penoso? Não é fácil encontrar quem consinta em repartir o infortúnio! Ennio disse com razão: ?O amigo
fiel se reconhece nas infidelidades da sorte?. Entretanto duas coisas acusam a fraqueza e a leviandade de
quase todos os homens: a arrogância na prosperidade e o abandono da infelicidade, ou melhor, desprezam-nos quando se acham numa situação feliz, ou nos abandonam quando nos encontramos em má situação."
Husserl em Meditações Cartesianas.

Quem quiser realmente se tornar filósofo deverá, uma vez na vida, voltar-se para si mesmo e, no seu interior, tentar derrubar todas as ciências admitidas até agora e tentar reconstruí-las. A filosofia_ a sabedoria-_é, de certa forma, um caso pessoal do filósofo. Deve constituir-se enquanto sua, ser sua sabedoria, seu saber que, embora tendendo ao universal, é adquirido por ele, e que ele deve poder justificar desde sua origem e em cada uma de suas etapas, baseando-se em suas intuições absolutas.
" Eu me arriscaria a dizer que a pior de todas as decisões é procurar fora o que de fato está dentro de cada um de nós. Muito bem. Mas o que é que eu tenho dentro de mim que difere tanto daquilo que o outro tem dentro dele? O que tenho são os sonhos, os desejos, assim como as decepções, as frustrações, o vazio, as tristezas, as emoções... Cada um, em particular, vai sentir as coisas a seu modo. O resto é mero adjetivo... Não há uma receita pronta para isso."
E. Facanali
A PESTE

"A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio.
Na verdade, uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam preparados. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dentro de alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem. Sim, porque as portas tinham sido fechadas algumas horas antes de ser publicado o decreto do prefeito e, naturalmente, era impossível levar em conta os casos particulares. Pode dizer-se que essa invasão brutal da doença teve, como primeiro efeito, o de obrigar nossos concidadãos a agir como se não tivessem sentimentos individuais. Nas primeiras horas do dia em que o decreto entrou em vigor, a prefeitura foi invadida por uma multidão de requerentes que, ao telefone ou junto aos funcionários, expunham situações igualmente interessantes e, ao mesmo tempo, igualmente impossíveis de examinar. A bem da verdade, foram necessários vários dias para que nos déssemos conta de que nos encontrávamos numa situação sem compromissos e que as palavras ?transigir?, ?favor?, ?exceção? já não tinham sentido.
Até mesmo a leve satisfação de escrever nos foi recusada. Por um lado, com efeito, a cidade já não estava ligada ao resto do país pelos meios de comunicação habituais e, por outro, um novo decreto proibiu a troca de qualquer correspondência, a fim de evitar que as cartas pudessem transformar-se em veículos de infecção. A princípio, alguns privilegiados puderam chegar às portas da cidade e entender-se com sentinelas dos postos de guarda que concordaram em facilitar a passagem de mensagens para o exterior. Isso era ainda nos primeiros dias da epidemia, em que os guardas achavam natural ceder a sentimentos de compaixão. No entanto, ao fim de algum tempo, quando os próprios guardas se convenceram realmente da gravidade da situação, recusaram-se a assumir responsabilidades cuja extensão não podiam prever. As comunicações telefónicas interurbanas, autorizadas a princípio, provocaram tal congestionamento nas cabines públicas e nas linhas, ;ue foram totalmente suspensas durante alguns dias e, depois, estritamente limitadas aos chamados casos urgentes, como morte, nascimento e casamento. Os telegramas tornaram-se, então, nosso único recurso. Seres ligados pela inteligência, pelo coração e pela carne ficaram reduzidos a procurar os sinais dessa comunhão antiga nas maiúsculas de um telegrama de dez palavras. E como, na realidade, as fórmulas que se podem utilizar num telegrama se esgotam depressa, longas vidas em comum ou paixões dolorosas resumiram-se rapidamente numa troca periódica de fórmulas feitas como ?Estou bem. Penso em ti. Saudades?.
Alguns, contudo, obstinavam-se em escrever e, sem trégua, para se corresponder com o exterior, imaginavam estratagemas que acabavam sempre por se revelar ilusórios. Mesmo quando alguns dos meios que tínhamos imaginado obtinham êxito, ficávamos sem sabê-lo, por não recebermos qualquer resposta. Durante semanas ficamos, então, reduzidos a recomeçar sempre a mesma carta, a copiar as mesmas informações e os mesmos apelos, se bem que, depois de um certo tempo, as palavras de sangue, ditadas pelo coração, perdiam o seu sentido. Então, nós as copiávamos maquinalmente, tentando, por meio dessas frases mortais, dar sinais de nossa vida difícil. E, finalmente, a esse monólogo estéril e teimoso, a essa conversa árida com uma parede, o apelo convencional do telegrama parecia-nos preferível.
Aliás, alguns dias depois, quando se tornou evidente que ninguém conseguiria sair da cidade, alguém teve a ideia de perguntar se o regresso dos que haviam partido antes da epidemia podia ser autorizado. Depois de alguns dias de reflexão, a prefeitura respondeu afirmativamente. Mas logo estabeleceu que os repatriados não poderiam, em caso algum, voltar a sair da cidade e que, se eram livres para vir, não o seriam para tornar a partir. Algumas famílias, poucas aliás, não levaram a situação a sério e, sobrepondo a qualquer prudência o desejo de rever os parentes, convidaram estes últimos a aproveitar a ocasião. No entanto, os prisioneiros da peste logo compreenderam o perigo a que expunham os parentes e resignaram-se a sofrer a separação. No momento mais grave da doença, só se viu um caso em que os sentimentos humanos foram mais fortes que o medo de uma morte torturada. Ao contrário do que se poderia esperar, não eram dois amantes, que o amor atirava um para o outro, acima do sofrimento. Tratava-se apenas do velho Dr. Gastei e de sua mulher, casados há tantos anos. Alguns dias antes da epidemia, Mme Gastei dirigira-se a uma cidade vizinha. Não eram sequer um desses casais que oferecem ao mundo o exemplo de uma felicidade invejável, e o narrador está em condições de dizer que, segundo todas as probabilidades, esses esposos, até então, não tinham a certeza de estarem satisfeitos com a sua união. Mas essa separação brutal e prolongada os capacitara a afirmar que não conseguiam viver afastados um do outro e que, diante dessa verdade subitamente revelada, a peste era coisa sem importância".

Albert Camus
O Existencialismo é um humanismo

?Ao concebermos um Deus criador, identificamo-lo, na maioria das vezes, com um artífice superior, e, qualquer que seja a doutrina que considerarmos ? quer se trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz -, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando. Assim, o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de determinada concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Desse modo, o homem individualmente materializa certo conceito que existe na inteligência divina. No século XVIII, o ateísmo dos filósofos elimina a noção de Deus, porém não suprime a idéia de que a essência precede a existência.

O homem possui uma natureza humana; essa natureza, que é conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal: o homem.

O existencialismo ateu... Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define.

O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou mesmo a da mesa. Pois queremos dizer que o homem, antes de mais nada existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser.

SARTRE, Jean-Paul.
Sobre Jardins

Deus Todo-Poderoso foi quem primeiro plantou um jardim. Na verdade, plantar jardins é o mais puro dos prazeres humanos, isto é, aquele que constitui maior repouso para o espírito do homem; sem jardins, edifícios e palácios não passam de construções grosseiras; e vemos sempre que, .à medida que os tempos desabrocham para a civilizarão e para a elegância, os homens se preocupam em construir edifícios grandiosos e a jardinar delicadamente, como se a jardinagem fosse o complemento máximo da perfeição. Eu deduzo da maneira como estão ordenados os jardins reais, os quais devem ser jardins para todos os meses do ano, durante os quais, frequentemente, belas flores devem então estar
no seu tempo.
Para Dezembro e janeiro, e na última parte de Novembro, deve-se escolher plantas que permaneçam verdes, no inverno: azevinho, hera, louro, zimbro, teixo, ananaz; abetos, rosmaninho e alfazema; pervinca branca, púrpura e azul; carvalhinha, a planta chamada alga, laranjeiras, limoeiros e murta, se conservados em estufa; e manjerona doce, também sob aquecimento.
Seguem-se, para a última parte de janeiro e para o mês de Fevereiro, as árvores mezereon que florescem nessa época; o açafrão da primavera, amarelo e cinzento; orelha de urso, anémonas, tulipas temporãs, jacinto oriental, chamairis, e fritilárias. Para Março, vêm as violetas, especialmente as singelas e azuis, que são as temporãs; o narciso amarelo, a mar ganida, as amendoeiras em flor, os pessegueiros também floridos, bem como os pilriteiros e as rosas bravas.
Em Abril, teremos a violeta branca dobrada, o goivo amarelo, o goivo comum, as
primaveras, a flor-de-lis e os lírios de toda espécie; a flor do rosmaninho, a tulipa, a peónia dobrada, o narciso pálido, o trevo dos prados, a madressilva francesa, as cerejeiras em flor, o abrunheiro de Damasco e a ameixoeira em flor, o espinheiro em folha e o lilás.

Em Maio e junho vêm os cravos de todas as qualidades, em particular o cravo rubro; rosas de todas as espécies, com excepção da rosa de almíscar, que vem mais tarde; madressilvas, morangueiros, buglossa, aquilégia, malmequeres franceses, flos africanos, cerejas em fruto, groselhas, figos em fruto, limas, vinhas em flor, alfazema em flor, o satiricão doce de flor branca, a herba nzuscaria, o lírio dos vales, as macieiras em flor. Em julho, seguem-se os goivos de todas as variedades, as rosas almiscaradas, as tílias em
flor, as petas temporãs, as ameixas em fruto, as maçãs em amadurecimento e verdes. Em Agosto frutescem as ameixoeiras de toda espécie, as pereiras, os alperceíros, a uva espiro, a aveleira, o melão perfumado, e o acónito de todas as cores. Em Setembro, é o tempo das uvas em cachos, das maças, das papoulas de todas as cores, pêssegos, marmelos de várias qualidades, da ameixa nectarina, dos pilriteiros e das geras para compota.

Em Outubro e princípios de Novembro, teremos as sorveiras, as nêsperas, o abrunho silvestre, as rosas podadas ou transplantadas para florir mais tarde, as azinheiras, e várias outras plantas semelhantes. Estas indicações dizem respeito ao clima de Londres, mas o que pretendem significar, evidentemente, é que vós podeis ter "ver perpetuum" , de acordo com as circunstâncias do lugar. E porque a respiração das flores é extremamente doce na atmosfera, (em suspensão na qual ela flutua, ondule lando como a harmonia da música), vê-se, portanto, que nada pode deleitar tanto como saber que são as flores e as plantas que melhor perfumam o ambiente. Rosas vermelhas e adamascadas, são flores avaras do seu aroma; tanto assim, que podeis passear ao longo de toda uma alameda ladeada de roseiras, sem nada sentir da sua doçura, a menos que seja à hora do rocio matinal. Os loureiros, da mesma forma, não exalam perfume enquanto crescem; a emanarão do rosmaninho é leve, o mesmo acontecendo com a manjerona doce. A flor que, mais do que todas as outras, exala no espaço o mais doce perfume, é a violeta, especialmente a violeta branca dobrada, que floresce duas vezes por ano, por volta dos meados de Abril e próximo ao dia de S. Bartolomeu, em Agosto. Depois da violeta vem a rosa-almiscarada; em seguida o morangueiro, que deixa, ao morrer, um aroma cordial dos mais excelentes; e ainda a flor das vinhas que é uma leve poeira, como a poeira dum relvado, que parece depositar-se sobre os cachos ao primeiro desabrochar; depois, as roseiras bravas e também os goivos amarelos que são flores encantadoras para plantar sob a janela de uma sala de estar ou de um quarto térreo; e ainda os cravos e os goivos comuns, especialmente os rajados de rosa, e o cravo da índia; depois as flores da tília; e, enfim, a madressilva, cujo aroma muitas vezes é percebido muito ao longe. Das ervilhas de cheiro não falo, porque são flores campestres; mas aquelas que mais deliciosamente perfumam o ar, não se passarmos perto delas, como as que mencionamos, mas quando pisadas e esmagadas, são três, a saber: a pimpinela, o tomilho silvestre e a hortelã; portanto, devereis plantar alamedas inteiras com estas três plantas, para ter o prazer de sentir-lhes o perfume quando passeardes ou caminhardes.

Para jardins, (fazendo referência àqueles que são na verdade principescos, como acontece com os que construímos para residências), a área não deve ser inferior a trinta acres de terreno, e será dividido em três partes: o relvado, à entrada; um matagal ou deserto à saída; e n jardim principal, ao meio, além de alamedas dos dois lados. Em minha opinião, devem destinar-se para o relvado quatro acres, seis ao tojal, quatro e quatro para cada lado, e doze ao jardim principal. O relvado proporciona dois prazeres: primeiro, porque nada é mais
agradável à vista do que a relva que se conserva aparada curta; segundo, porque vos permitirá abrir uma linda alameda ao meio, pela qual vos dirigireis directamente à sebe majestosa que se destina a cercar o jardim, mas como a alameda será longa, e tanto na época estival como durante as horas quentes do dia se não deverá alcançar a sombra do jardim pagando-a com essa caminhada ao sol através do relvado, devereis plantar de cada lado do relvado uma alameda coberta, mercê de uma obra de carpintaria, a qual deve medir cerca de doze pés de altura, e seguindo a qual vos será possível atingir o jardim, caminhando à sombra. No que concerne a confecção de arabescos ou desenhos, com terras diversamente coloridas, sob as janelas da casa que abrem sobre o jardim, não
passam de verdadeiros brinquedos; pois que é possível ter iguais perspectivas olhando para uma torta de frutas.

É preferível que o jardim seja quadrado, e circundado pelos quatro lados por uma sebe majestosa e podada em arcadas; as arcadas serão reforçadas por armações de madeira, com cerca de dez pés de altura e seis de largura, e espadadas por distância igual ao vão do arco. Sobre os arcos, deixai ficar uma borda de cerca de quatro pés de altura de sebe inteira, mantida igualmente por uma armarão de madeira; e sobre esta parte superior, por cima de cada arco, um pequeno torreão, com bojo suficientemente grande para suportar uma gaiola para pássaros; sobre cada pano, entre os arcos, qualquer outra figura pequena,
com largos pratos redondos de vide-o colorido, para que o sol neles acenda cintilações; penso, porém, que esta sebe deve ser plantada sobre um pequeno talude, não cortado abruptamente, mas em suave declive, talude que terá aproximadamente seis pés e será todo plantado de flores. Entendo igualmente que n recinto quadrado correspondente ao jardim não deve ocupar toda a largura do terreno, mas deixar cie cada lado uma área suficiente para diversas alamedas laterais, às quais dão acesso as alamedas laterais e cobertas do relvado; contudo, não deverá haver alamedas com sebes nas áreas limítrofes
deste grande recinto; nem do lado anterior, para que se possa ter uma boa perspectiva sobre a sebe do lado do relvado, nem do lado mais distante, para que se possa gozar de uma bela perspectiva através dos arcos que abrem sobre o matagal.

Para o arranjo do terreno no interior do recinto que fica rodeado pela grande sebe, cada um pode fazê-lo conforme a maior variedade de planos, sendo eu de opinião, não obstante, que seja qual for a maneira como o dispuserdes, não deverá ser demasiado sobrecarregada de enfeites ou trabalhos; sob este ponto de vista, confesso que não gosto de figuras recortadas em macios de zimbro ou de outras plantas de jardim; acho que isso é bom para crianças.
Pequenas sebes baixas, com orlas arredondadas, algumas bonitas pirâmides, agradam-me bastante; e, de onde a onde, lindas colunas sustentadas por armações de madeira. Sou ainda de opinião que as áleas devem ser belas e espaçosas. Nas zonas laterais, poderão ser mais fechadas do que no jardim principal. Acho bem construir exactamente ao meio, um belo monte, com três áleas e subidas, suficientemente largas para quatro pessoas caminharem ombro a ombro; avenidas que desejaria fossem tranadas como círculos perfeitos, sem quaisquer baluartes ou obras em relevo. O monte deverá ter, ao todo, uns trinta pés de altura, e um caramanchão aprazível para festins, com alguns fogões discretamente modelados e sem muitos espelhos.

Pelo que diz respeito a fontes, são elas de uma grande beleza e frescura; mas, ao contrário, os lagos prejudicam o conjunto e desfeiam os jardins, enchendo-os de moscas e de rãs. Em minha opinião, as fontes devem ser de duas naturezas: umas, onde a água jorra em chuva fina ou em repuxo; outras que são lindos receptáculos para água, de trinta a quarenta pés quadrados, mas sem peixes, nem lodo ou lama. As fontes da primeira categoria, ornamentadas com estátuas, douradas ou em mármore, actualmente em voga, ficam muito bem; mas o problema mais importante é o que consiste em evitar a estagnarão da água, que deve ser conduzida de modo a nunca permanecer a não ser nos recipientes do
fundo ou na cisterna; em conseguir que a água se não descolore, esverdeie ou avermelhe pela estagnarão, ou que ocorra qualquer fenómeno do mesmo género, ou acumule qualquer limo ou detritos putrefactos. Além disto é necessário que todos os dias seja limpa à mão; ficam igualmente muito bem alguns degraus em volta, ou um pavimento bem calcetado.

Francis Bacon
"Que cada uma de vós faça o que estiver em suas forças. O que uma não consegue fazer, ela o faça por meio de outra que o consegue - se ela aprecia o que essa outra faz e o que as suas próprias forças não lhe permitem realizar. Portanto, a quem tem menos forças não impeça aquela que as possui, nem essa exija demais das que podem menos".

AGOSTINHO DE HIPONA

"Nunca, desde que o Sol está no céu e os planetas giram em torno dele, se havia percebido que a existência do homem está centrada em sua cabeça, ou seja, em seu pensamento, que o inspira na construção do mundo da realidade...".

HEGEL

quarta-feira, 17 de março de 2010

A CASA DOS LOUCOS

"No fundo da prática científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar. Mas achamos também, e de forma tão profundamente arraigada na nossa civilização, esta idéia que repugna à ciência e à filosofia: que a verdade, como o relâmpago, não nos espera onde temos a paciência de emboscá-la e a habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios, lugares privilegiados, não só para sair da sombra como para realmente se produzir. Se existe uma geografia da verdade, esta é a dos espaços onde reside, e não simplesmente a dos lugares onde nos colocamos para melhor observá-la. Sua cronologia a é a das conjunções que lhe permitem se produzir como um acontecimento, e não a dos momentos que devem ser aproveitados para percebê-la, como por entre duas nuvens. Poderíamos encontrar na história toda uma tecnologia desta verdade: levantamento de suas localizações, calendário de suas ocasiões, saber dos rituais no meio dos quais se produz.


Exemplo desta geografia: Delfos, onde a verdade falava, fato que surpreendia os primeiros filósofos gregos; os lugares de retiro no antigo monarquismo; mais tarde, a cátedra ou do magistério, a assembléia dos fiéis. Exemplo desta cronologia; aquela que achamos de forma elaborada na noção médica de crise, e cuja importância se promulgou até o fim do século XVIII. A crise, tal como era concebida e exercida, é precisamente o momento em que a natureza profunda da doença sobe à superfície e se deixa ver. É o momento em que o processo doentio, por sua própria energia, se desfaz de seus entraves, se liberta de tudo aquilo que impedia de completar-se e, de alguma forma, se decide a ser isto e não aquilo, decide o seu futuro ? favorável ou desfavorável. Movimento em certo sentido autônomo, mas do qual o método pode e deve participar. Este deve reunir em torno dela todas as conjunções que lhe são favoráveis e prepara-la, ou seja, invoca-la e suscita-la. Mas deve também colhê-la como se fosse uma ocasião, nela inserir sua ação terapêutica e combate-la no dia mais propício. Sem dúvida, a crise pode ocorrer sem o médico, mas se este quiser intervir, que seja segundo uma estratégia que se imponha à crise como momento da verdade, pronta a sub-repticiamente conduzir o momento a uma data que seja favorável ao terapeuta. No pensamento e na prática médica, a crise era ao mesmo tempo momento fatal, efeito de um ritual e ocasião estratégica.
Numa ordem inteiramente diversa, a prova judiciária também era uma ocasião de se manipular a produção da verdade. O ordálio que submetia o acusado a uma prova, o duelo no qual se confrontavam acusado e acusador ou seus representantes, não eram uma maneira grosseira e irracional de detectar a verdade e de saber o que realmente tinha acontecido quanto à questão em litígio. Eram uma maneira de decidir de que lado Deus colocava naquele momento o suplemento de sorte ou de força que dava a vitória a um dos adversários. O êxito, se tivesse sido conquistado conforme o regulamento indicava em proveito de quem devia ser feita a liquidação do litígio. E a posição do juiz não era a de um pesquisador tentando descobrir uma verdade oculta e restituí-la na sua forma exata, devia sim organizar a sua produção, autenticar as formas rituais na qual tinha sido suscitada. A verdade era o efeito produzido pela determinação ritual do vencido.


Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos séculos a existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco sendo desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo discurso filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento. Ela não é encontrada mas sim suscitada: produção em vez de apofântica. Ela não se dá por mediação de instrumento, mas é provocada por rituais, atraída por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões: estratégia e não método. Deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder".

(FOUCAULT, Michel in Microfísica do Poder) .
"Os homens, com efeito, apegam-se mais fortemente às coisas presentes do que àquelas do passado, e quando nas presentes eles deparam o bem, desfrutam-no e não ambicionam mais nada".
(O Príncipe)
MAQUIAVEL

"Devo dizer ainda que meu desejo não é o de explicar, como pretendem os filósofos, como as coisas são de fato no mundo verdadeiro, mas apenas pretendo simular um mundo ao meu bel-prazer, no qual não haja nada que os mais grosseiros espíritos não sejam capazes de conceber".
(O mundo ou tratado da luz)
RENÉ DESCARTES

"A história das ideias reconhece, pois, dois níveis de contradições: o das aparências, que se resolve na unidade profunda do discurso, e o dos fundamentos, que dá lugar ao próprio discurso".
(A arqueologia do saber)
MICHEL FOUCAULT

"Resta-nos assim um único caminho: o ser é. Neste caminho há grande número de indícios: não sendo gerado, é também imperecível; possui, com efeito, uma estrutura inteira, inabalável e sem meta; jamais foi nem será, pois é, no instante presente, todo inteiro, uno, contínuo".
(Fragmentos)
PARMÊNIDES

"A forma mais frequente em que a alegria é assim prescrita como meio de cura é a alegria de causar alegria".
(Genealogia da Moral)
FRIEDRICH NIETZSCHE

"Se algum dia foi possível acusar a natureza de desprezar sua obra, de contradizer seu plano, de agir contra seus próprios fins,foi nessa ocasião. Será esse, pois, o melhor dos mundos possíveis?"
(Dicionário Filosófico)
VOLTAIRE

"O belo se revelará em si mesmo, por si mesmo, sempre uniforme, ao passo que todos os corpos belos participam dele de tal maneira que nascimentos e mortes nada lhe aumentam nem diminuem, em nada o efetam".
(O Banquete)
PLATÃO

"Aquele que quiser viver em tranquilidade não se deve agitar demasiado, nem em sua vida particular, nem em sua vida coletiva; o que faz, não deve ir além de sua própria força e de sua natureza; e deve tomar cuidado para que quando vier a fortuna e tentar seduzi-lo, através de sua opinião, à desmedida, possa afastá-la e guardar somente aquilo que estiver de acordo com as suas forças. Pois a plenitude comedida é mais segura do que a desmedida".
(Fragmentos)
DEMÓCRITO DE ABDERA
"O primeiro mestre de filosofia da humanidade foi a serpente do paraíso." (Manuel Tamayo y Baus)

"Se você é um filósofo que não consegue enxergar o que existe de vivo além dos livros e dos pós das bibliotecas, viva mais a filosofia, talvez um dia quem sabe, ao invés das citações dos mortos, você seja capaz de citar também o que esta dentro de você." (Beatriz Camelo)

"Filosofar é duvidar." (Michel de Montaigne).

segunda-feira, 15 de março de 2010

A EVOLUÇÃO DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

A Evolução

Semana passada comprei um produto que custou R$ 1,58.

Dei à balconista R$ 2,00 e peguei na minha bolsa 8 centavos, para

evitar receber ainda mais moedas.

A balconista pegou o dinheiro e ficou olhando para a máquina

registradora, aparentemente sem saber o que fazer.

Tentei explicar que ela tinha que me dar 50 centavos de troco, mas ela

não se convenceu e chamou o gerente para ajudá-la.

Ficou com lágrimas nos olhos enquanto o gerente tentava explicar e ela

aparentemente continuava sem entender.

Por que estou contando isso?


Porque me dei conta da evolução do ensino de matemática desde 1950,

que foi assim:

1. Ensino de matemática em 1950:

Um cortador de lenha vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de

produção desse carro de lenha é igual a 4/5 do preço de venda .

Qual é o lucro?


2. Ensino da matemática em 1970:

Um cortador de lenha vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de

produção desse carro de lenha é igual a 4/5 do preço de venda ou R$

80,00. Qual é o lucro?


3. Ensino de matemática em 1980:

Um cortador de lenha vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de

produção desse carro de lenha é R$ 80,00. Qual é o lucro?


4. Ensino de matemática em 1990:

Um cortador de lenha vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de

produção desse carro de lenha é R$ 80,00. Escolha a resposta certa,

que indica o lucro:

( )R$ 20,00 ( )R$40,00 ( )R$60,00 ( )R$80,00 ( )R$100,00


5. Ensino de matemática em 2000:

Um cortador de lenha vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de

produção desse carro de lenha é R$ 80,00. O lucro é de R$ 20,00.

Está certo?


6. Ensino de matemática em 2007:

Um cortador de lenha vende um carro de lenha por R$100,00. O custo de

produção é R$ 80,00. Se você consegue ler coloque um X no R$ 20,00.

( SPARTACUS ).
O MITO DE PROCUSTO

A visão politicamente correta ou os ajustamentos teóricos compatíveis com explicações abrangentes ou instrumentais têm reduzido a capacidade do sujeito coletivo em problematizar questões naturalizadas, socialmente.
Na mitologia grega, Procusto convidava incautos para passar a noite em sua casa e repousar em sua cama de ferro; porém, caso o(a) visitante não tivesse as medições adequadas para cama, o(a) mesmo(a) era esticado(a) ou tinha suas pernas serradas.
O mesmo tem ocorrido com o poder de discernimento dos seres humanos. Quando temos nossa capacidade reflexiva decepada ou achatada, reproduzindo dados descontextualizados, não conseguimos exercer efetivamente o nosso ‘ livre pensar’. Nesta direção, quantas potencialidades humanas já foram jogadas no ralo? Quantos homens e mulheres rotulados como irrecuperáveis ou desajustados sociais tiveram suas existências ceifadas pela exclusão virulenta? Quando não expressamos nossos sentimentos ou quando não conseguimos argumentar qualquer situação que nos afeta, tornamo-nos servos obedientes da ‘lógica do capital’, representada no consumo desenfreado e frenético.
A participação dos indivíduos na sociedade se reduz ao quanto ele pode adquirir e não o quanto ele é essencial na construção das políticas públicas. A estupidez humana, a ignorância sistemática e um profundo mal-estar que nos abala neste início de milênio, apenas confirma que o ‘presentismo’, o ‘aqui e agora’, seqüestraram nossas identidades coletivas sem nenhum ressentimento.
Enquadrar-se na lógica do capital é aceitar que nenhuma outra construção social é possível. Que podemos continuar despejando toneladas de lixo tóxico nos mares e rios do planeta, porque estamos certos da impunidade. Não quero que estiquem ou amputem as minhas pernas. Quero poder me movimentar livremente pela turba e ter autonomia para pensar diferente. É pedir demais?

terça-feira, 9 de março de 2010

Deleuze e nós

Se há um nós no meio de certo filósofo é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair interferências
( Luiz B. L. Orlandi ).

Esse título é plágio da fórmula "Espinosa e nós", presente em um pequeno texto escrito por Gilles Deleuze (1925-1995) em 1978, retomado em 1981, no final de seu Espinosa - Filosofia prática. A fórmula era assim entendida: "Nós no meio de Espinosa." E se há um nós no meio de certo filósofo, no meio das vagas e labaredas de suas obras, é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair nossas interferências, justamente por força de tudo que acontece em seu meio. Evidentemente, esse nós não sugere unanimidade intelectual ou de sentimentos. No mínimo, é um plural de convergências e divergências dos mais diversos matizes. E cada um desse nós, aventurando-se como pode, retoma a pergunta: que acontece no meio de Deleuze?

Acontecem afetos afirmativos, sente-se no rosto um novo frescor e novos ardores, nova maneira de termos encontros até inocentes com o pensamento, sem o cultivo da morte da metafísica ou do fim da Filosofia. Nesse meio, evitamos o hábito do obituário e a presunção dos transcendentes. Por que esse meio de Deleuze nos livra disso e mantém viva uma interessante possibilidade do pensamento filosófico? Não só pela perspicácia, pelo humor e até beleza de muitos dos seus textos, e nem apenas pelo aspecto saboroso de alianças que ele estabelece ao longo de uma quebradiça história da Filosofia. Sim, história quebradiça, porque, ao invés de condenada a blocos da monotonia cronológica, essa história pode ser aberta a viagens plenas de vigor, tão rigorosas quanto intensas. E quando ela se abre assim nesse meio? Quando o pensar se sente tomado por uma dramaturgia de idéias, por um problemático jogo de forças desterritorializantes, forças que se exercem como seleção e recriação de horizontes conceituais que pulsam nos grandes ou pequenos sistemas filosóficos. Sente-se isso no meio de Deleuze, seja por leve inspiração indireta, seja quando o acompanhamos diretamente em suas curtas ou longas estadas o obrigando a pensar. É que, em vez de pensar sobre isto ou aquilo, esse meio deleuzeano nos faz experimentar a necessidade de pensar com, postura que leva o conceito não à presunção de comandar, mas à tarefa de se determinar com aquilo que ele determina, postura que vai esculpindo as condições necessárias para que as idéias se sintam bem a serviço da expressividade do caso, do acontecimento, das questões, dos problemas, das frases alheias, desta ou daquela singularidade. É o que se pode notar até mesmo em um breve esboço dos grupos de escritos aí encontrados.

1. Com efeito, nesse meio, a escrita nos leva a passear com novos olhos por paisagens conceituais que julgávamos fixadas em estudos certamente relevantes, mas não únicos. E eis que ganhamos um novo Hume com Empirismo e subjetividade (1953), livro que nos remete à idéia de um empirismo superior, graças a relações exteriores aos termos relacionados. Ganhamos um novo Proust com Proust e os signos (1964; 1970), no qual, ao invés do apego ao passado empírico, o que se enreda em mundos de signos a serem desvendados é o aprendizado de um homem de letras.

2. E mais: ao lermos Nietzsche e a Filosofia (1962), e até o pequeno Nietzsche (1965), além do decisivo Espinosa e o problema da expressão (1968), assim como a retomada do pequeno Espinosa (1970) em Espinosa - Filosofia prática (1981), o que vemos conceitualmente justificado é a junção Nietzsche-Espinosa como guerreiros afirmativos, desses que combatem por uma vida eticamente valorizada e não moralmente depreciada. E não seria abuso juntarmos a essa dupla o nome de outro guerreiro, François Châtelet, a quem Deleuze, em Péricles e Verdi - A filosofia de François Châtelet (1988) presta uma digna homenagem ao ativar o conceito de combate na imanência.

3. Os incorporais dos estóicos ganham efervescente operatoriedade em Lógica do sentido (1969), dimensionam a idéia de acontecimento nesse livro, que também nos reanima quanto a Epicuro, a Lucrécio. Compreende-se a coloração bergsoniana desse meio com a leitura das linhas de diferenciação já armadas em O bergsonismo (1966). E como que aplicando uma crítica de Bergson a mistos mal compostos, encontramos importante desmontagem do misto denominado sado-masoquismo em Apresentação de Sacher-Masoch (1967).

4. Em outro cruzamento de latitudes e longitudes desse meio deleuzeano, uma nova explicitação conceitual da dobra barroca nos surpreende em A dobra - Leibniz e o barroco (1988). E boa surpresa reaparece nessa mesma obra, por força da idéia de acontecimento: reencontramo-nos com o conceito de ocasião atual, de Whitehead. Há toda uma variação de perspectivas que se acumulam nesse cruzamento. Com efeito, pouco antes, Deleuze publicara seu benquisto e conhecido Foucault (1986). Nesse cruzamento de atenções, está em pauta a questão das combinações das forças atuantes no homem e das forças do fora. Se, com Leibniz, nossas forças se combinam com aquelas de elevação ao infinito sob a forma-Deus, o problema que agora se coloca já não é esse, e nem mesmo aquele que consiste em submeter à forma-Homem as relações entre nossas forças e as que configuram nossa finitude na vida, no trabalho e na linguagem. O problema que se impõe a ambos é o da dissolução da forma-Homem por efeito de outra composição: as forças atuantes no homem combinam-se com forças de ilimitação do finito, aquelas que potencializam a produção de combinações praticamente ilimitadas de conglomerados finitos de componentes. É fácil notar uma das linhas favorecidas por esta combinação: a linha de proliferação dos controles na sociedade.

5. Mas nossas viagens por esse meio não param aí. Encontramos inovações na maneira pela qual, em Superposições (1979), são conceitualmente pensadas as operações com que Carmelo Bene cria seu teatro menor. Em O esgotado (1992), por sua vez, é com Samuel Beckett que nos encontramos, um Beckett que obriga Deleuze a distinguir conceitualmente o esgotado (que desliza por disjunções inclusivas) do fatigado (que pratica o jogo das disjunções exclusivas): enquanto o fatigado só esgotou a realização e já nada pode realizar, o fatigado esgota todo o possível e nada mais pode possibilitar, coisa que lhe ocorre de várias maneiras. Há uma intensidade no esgotamento, assim como, na pintura de Francis Bacon, há intensidade na dissipação da imagem. Essa pintura é acompanhada em Lógica da sensação (1984), obra que tematiza a passagem da matéria-forma à matéria-força.

6. Visitamos também o cinema e a literatura. Mas não para falar sobre este ou aquele filme, sobre este ou aquele romance. Com o socorro de filmes, de estudos dessa arte, dos que pensam a respeito do seu trabalho cinematográfico, trata-se de elaborar conceitos do cinema, isto é, de discriminar seus signos e de pensar relações constitutivas dessa arte em suas variações decisivas. É o que lemos em Cinema 1: imagem-movimento (1983) e em Cinema 2: imagem-tempo (1985). Além do cinema, há muita literatura conceitualmente pensada nesse meio deleuzeano. É o que ocorre no livro escrito por Deleuze em companhia de Félix Guattari, Kafka - por uma literatura menor (1975). Neste livro, certas noções ganham duradoura consistência, como a de agenciamento, a de devir imperceptível, de máquina social etc. E nele também aprendemos que fazer fugir é muito mais que criticar. Essa auto-exigência deleuzeana é praticada justamente em Crítica e clínica (1993), uma vasta reunião de textos, muitos dedicados à escrita literária: crítica, como traçado do plano de consistência da obra, e clínica como traçado de linhas sobre esse plano; o delineamento do bebê como combate, o de uma lógica extrema sem racionalidade, o da avaliação imanente, o dos cristais do inconsciente etc.

7. Esse meio ainda se abre à prodigiosa multiplicidade de outros recantos, como aqueles em que se reúnem os mais variados textos e entrevistas: Diálogos (1977; 1996), escrito com Claire Parnet; Conversações (1990), A ilha deserta (2002); e Dois regimes de loucos (2003), coletâneas extremamente importantes para quem se interessa pelas múltiplas facetas teóricas e práticas dos debates culturais e políticos contemporâneos.

8. Não apontamos ainda outros acontecimentos que duram nesse meio deleuzeano graças à colaboração havida entre -Deleuze e Guattari: uma nova teoria do desejo em O anti--Édipo (1972), desejo não mais marcado pela falta, mas por uma produtividade coextensiva ao meio natural-social-histórico; um vasto e complexo inconsciente espinosano distribuído em planos intensivos em Mil platôs (1980); e nova concepção do que seja ou deva ser a própria Filosofia. Sim, o meio deleuzeano é um convite para que estejamos atentos a relações de ressonâncias com outros domínios, relações não hierárquicas entre filosofias, ciências e artes, a respeito da Ética e dos combates na imanência pela dignificação do viver...

É claro que esses oito itinerários pelo meio Deleuze poderiam ser multiplicados. O que nos obriga a perguntar: seria esse meio o de uma dispersão de temas meramente justapostos ou, ao contrário, submetidos a um modelo interpretativo? Nada disso. Nele, qualquer coisa pode forçar o pensamento filosófico a cumprir sua única tarefa: a de sentir e pensar conceitualmente o jogo problemático constitutivo da coisa em seus encontros, o jogo que envolve a diferença e o problema em pauta a cada caso. Tarefa difícil e tematizada de modo exemplar em Diferença e repetição (1968). É que, a cada instante, o pensamento recai em um jogo antigo, o jogado entre quatro paredes da representação: a identidade do conceito, a analogia do juízo, a oposição dos predicados e a semelhança do percebido. Como subverter este jogo a cada instante? Tarefa difícil, para a qual o meio deleuzeano conta com uma proposição ontológica irredutível a receituários metodológicos: na experiência real dos encontros, todo e qualquer ente se diz univocamente como correspondências problemáticas entre diferenciações virtuais e diferenciações atuais. Assim, a problemática da diferença ganha uma nova imagem do pensamento filosófico.
"nós vivemos num ambiente de lassitude moral que se estende a todas as camadas da sociedade e que esse negócio de dizer que as elites são corruptas mas que o povo é honesto é conversa fiada. Nós somos um povo de comportamento desonesto de maneira geral, ou pelo menos um comportamento pouco recomendável".

( JOÃO UBALDO RIBEIRO).

Entendendo o Brasil

Numa tarde de sexta-feira, recebi um telefonema de um amigo me convidando para ir a um churrasco em sua casa. Acontece que na naquela noite eu tinha que dar aula na faculdade. O problema é que eu queria ir ao churrasco, mas como?

Bem, eu agi como, geralmente, todos nós agimos: fiz de conta que estava cumprindo com a minha obrigação quando, na verdade, satisfiz o meu prazer.

O churrasco começava às oito da noite e a aula às sete e meia. Fui à faculdade, registrei a aula, fiz a chamada e inventei uma aula de leitura na biblioteca, abandonando a turma. Saí para o churrasco querendo acreditar que cumprira meu dever de professor.

No churrasco, fiquei numa mesa com o dono da casa, que é médico, o amigo que estava sendo homenageado, que é policial, um amigo do homenageado que é advogado e político e a sua esposa que é universitária e estuda no período da noite.

O assunto era um só: a roubalheira dos nossos políticos e a passividade da sociedade (todos nós) mediante a podridão do episódio do mensalão. Todos estávamos revoltados e propondo soluções para o melhor funcionamento da máquina pública e para o resgate da ética entre a classe política.

Num dado momento, o telefone do dono da casa tocou e ele se afastou para atender. Retornando, disse com raiva: "Não dá pra trabalhar com certas pessoas". Naquela noite, ele estava de plantão no hospital, mas chegou lá cedo, visitou alguns pacientes e leu "por cima", os prontuários. Depois foi para casa e deixou como recomendação: "só me liguem em caso de extrema emergência ou se aparecerem pacientes particulares".

Estava aborrecido porque a enfermeira lhe telefonara só porque chegou um sexagenário com suspeita de infarto. Ele "receitou" medicamentos pelo telefone e disse que a enfermeira só devia ligar de novo se acontecesse algo grave.

Para aliviar o clima, perguntei ao amigo que estava sendo homenageado se já havia feito a sua mudança de casa. Ele respondeu que sim e, que isso não tinha lhe custado nada, pois o dono da transportadora lhe havia retribuído "um favor": meses antes, ele tinha "resolvido" uns probleminhas de multas nos seus carros que poderiam lhe custar a habilitação e, até mesmo, a sua empresa!

Aí, a esposa do político liga para uma colega que também fazia mestrado para saber se ela tinha respondido à chamada por ela enquanto ela estava no churrasco, pois ela já estava "pendurada nas faltas" nessa disciplina e não poderia ser reprovada. E, feliz, sorriu com a resposta da colega: dera tudo certo.

Em um outro momento, o anfitrião pergunta ao político como iria ficar o caso de uma certa pessoa. E ele respondeu que tudo estava indo bem, o problema era que na secretaria almejada já havia alguém concursado ocupando o cargo que tal pessoa pleiteava. Mas que ele não se preocupasse, pois estavam estudando uma medida legal (?) para transferir o "dito cujo" de função ou de setor para a vaga "do fulano" ser ocupada por ele. "Ele é um que não pode ficar de fora, pois foi comprometido com a gente até o fim", finalizou.

Em meio a tudo isso, não deixávamos de falar das CPI's, da corrupção dos políticos e da cumplicidade da sociedade que, apática, não movia uma palha para mudar nada.

Chegando em casa fui pensar naquela noite e em tudo o que havia presenciado.

De repente, me lembrei do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, que diz: "nós vivemos num ambiente de lassitude moral que se estende a todas as camadas da sociedade e que esse negócio de dizer que as elites são corruptas mas que o povo é honesto é conversa fiada. Nós somos um povo de comportamento desonesto de maneira geral, ou pelo menos um comportamento pouco recomendável".

O melhor era que eu não precisava fazer qualquer pesquisa para concordar com o escritor. A sua afirmação estava magistralmente retratada no meu comportamento e no comportamento dos meus amigos naquela noite e naquele churrasco que eu havia freqüentado.

Para começar, eu, como professor, roubei o povo ao fingir que estava dando aula. E estou surrupiando (roubando) a sociedade quando marco os tão conhecidos seminários só para não dar aulas, com a mentira disfarçada de que os alunos precisam treinar a arte de expressar bem as suas idéias. Isso pelo fato dessa afirmação não ser verdade, mas parte de uma verdade maior.

É lógico que os alunos precisam treinar a arte de bem expressar as suas idéias, mas só depois de serem conduzidos pelo professor que, por sinal, é pago para fazer isso. A verdade inteira é que, quase sempre por motivos pessoais, o professor acaba transformando o que seria uma, de várias técnicas de ensino, em sua prática regular de ensino e o resultado é uma enorme massa de estudantes "transfigurados", da noite para o dia, em professores dos professores que deviam ensinar, mas não ensinam.

E o que dizer do dono da festa, o médico que estava "tirando plantão" e que, ganhando o seu salário, reclamou de ser incomodado, apenas porque um senhor de idade estava com suspeita de infarto?

Somos tão convictos de que somos bons, que o médico chegou a dizer que, se ao menos o ancião tivesse sido diagnosticado por um profissional, então ele se sentiria na obrigação de ir atendê-lo.

Ele só esqueceu de um detalhe: se o plantonista do hospital que, por sinal era ele, estivesse cumprindo o seu plantão, o senhor de 64 anos de idade, casado, pai de seis filhos, aposentado e que trabalhava desde os doze anos de idade e contribuía com a previdência há trinta, talvez tivesse sido atendido por um profissional e não tivesse sofrido um derrame cerebral.

É interessante vermos, também, o caso da universitária, a defensora dos valores morais. E, aqui eu pergunto: que valores seriam esses? O famoso jeitinho brasileiro que, não custa lembrar, só virou instituição nacional porque nós lhe damos vida com as nossas atitudes!

Acredito que mais uma vez o Brasil passa por uma oportunidade de ouro para rever-se como país e sair crescido e melhorado de toda essa crise.

O grande problema está nas pessoas. Em mim, em você, nas nossas famílias,colegas, amigos e inimigos, parentes e aderentes. Se quisermos realmente uma nação melhor temos que assumir que nós também somos recebedores do mensalão e que, portanto, cada um de nós também é merecedor de sentar nas cadeiras da CPI.

Recebemos o mensalão quando fazemos coisas como as descritas acima, e também quando copiamos ou compramos CD's piratas, quando usamos software piratas, quando pagamos propinas ao guarda de trânsito para ele não nos aplicar multa, enfim, todos nós, cada um a seu modo e com o seu preço, também é culpado, pessoalmente, por tudo isso que está acontecendo no nosso país.

É bom não esquecer que nossos políticos não vieram de Marte, mas do nosso meio, corrompidos por nós, corruptos e corruptores. O real motivo para a sociedade assistir apática a toda essa decadência não é apatia, mas cumplicidade.

(Pedro Paulo Rodrigues Cardoso de Melo, Psicólogo Clínico, Psicopedagogo e Professor Universitário de Psicologia e Sociologia)

segunda-feira, 8 de março de 2010

É ESTE MEU POEMA, OU SERÁ DE OUTRA ?!?

É meu este poema ou é de outra?
Sou eu esta mulher que anda comigo
E renova a minha fala e ao meu ouvido
Se não fala de amor, logo se cala?

Sou eu que a mim mesma me persigo
Ou é a mulher e a rosa escondidas
(Para que seja eterno o meu castigo)
Lançam vozes na noite tão ouvidas?

Não sei. De quase tudo não sei nada.
O anjo que impulsiona o meu poema
Não sabe da minha vida descuidada.

A mulher não sou eu. E perturbada
A rosa em seu destino, eu a persigo
Em direção aos reinos que inventei.

Hilda Hilst
(1930-2004)

FELIZ DIA DAS MULHERES!!!!

terça-feira, 2 de março de 2010

José Alberto Gueiros.
23/09/1979.
O MEDO CAUSADO PELA INTELIGÊNCIA

Quando Winston Churchill, ainda jovem, acabou de pronunciar seu discurso de estréia na Câmara dos Comuns, foi perguntar a um velho parlamentar, amigo de seu pai, o que tinha achado do seu primeiro desempenho naquela assembléia de vedetes políticas. O velho pôs a mão no ombro de Churchill e disse, em tom paternal:
"Meu jovem, você cometeu um grande erro. Foi muito brilhante neste seu primeiro discurso na Casa. Isso é imperdoável. Devia ter começado um pouco mais na sombra. Devia ter gaguejado um pouco. Com a inteligência que demonstrou hoje, deve ter conquistado, no mínimo, uns trinta inimigos. O talento assusta."
E ali estava uma das melhores lições de abismo que um velho sábio pode dar ao pupilo que se inicia numa carreira difícil. A maior parte das pessoas encasteladas em posições políticas é medíocre e tem um indisfarçável medo da inteligência. Isso na Inglaterra. Imaginem aqui no Brasil...
Não é demais lembrar a famosa trova de Ruy Barbosa:
"Há tantos burros mandando
Em homens de inteligência
Que às vezes fico pensando
Que a burrice é uma Ciência."
Temos de admitir que, de um modo geral, os medíocres são mais obstinados na conquista de posições. Sabem ocupar os espaços vazios deixados pelos talentosos displicentes que não revelam o apetite do poder.
Mas é preciso considerar que esses medíocres ladinos, oportunistas e ambiciosos, têm o hábito de salvaguardar suas posições conquistadas com verdadeiras muralhas de granito por onde talentosos não conseguem passar.
Em todas as áreas encontramos dessas fortalezas estabelecidas, as panelinhas do arrivismo, inexpugnáveis às legiões dos lúcidos. Dentro desse raciocínio, que poderia ser uma extensão do "Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterdan, somos forçados a admitir que uma pessoa precisa fingir de burra se quiser vencer na vida. É pecado fazer sombra a alguém até numa conversa social.
Assim como um grupo de senhoras burguesas, bem casadas, boicota automaticamente a entrada de uma jovem mulher bonita no seu círculo de convivência, por medo de perder seus maridos, também os encastelados medíocres se fecham como ostras à simples aparição de um talentoso jovem que os possa ameaçar. Eles conhecem bem suas limitações, sabem como lhes custa desempenhar tarefas que os mais dotados realizam com uma perna nas costas, enfim, na medida em que admiram a facilidade com que os mais lúcidos resolvem problemas, os medíocres os repudiam para se defender.
É um paradoxo angustiante. Infelizmente temos de viver segundo essas regras absurdas que transformam a inteligência numa espécie de desvantagem perante a vida.
Como é sábio o velho conselho de Nelson Rodrigues:
"Finge-te de idiota e terás o céu e a terra."
O problema é que os inteligentes brilham sem perceber, sendo assim, que Deus os proteja!