segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Madame Bovary - Flaubert


Trecho 1
"Na cama, pela manhã, e lado a lado no travesseiro, olhava a luz do sol que passava entre a penugem de suas faces douradas, parcialmente cobertas pelas pequenas franjas de sua touca. Vistos de tão perto, seus olhos pareciam-lhe maiores, sobretudo quando ela abria várias vezes seguidas as pálpebras, ao acordar; negros na sombra e azul-escuro na claridade, possuíam camadas de cores sucessivas e que, mais espessas no fundo, iam clareando na superfície do esmalte. Os olhos dele perdiam-se naquelas profundezas..."

Trecho 2
"Aliás, mais as coisas eram próximas, mais seu pensamento se afastava delas. Tudo o que a rodeava imediatamente, campo entediante, pequenos-burgueses imbecis, mediocridade da existência, parecia-lhe uma exceção no mundo, um acaso singular em que ela se achava presa, enquanto do outro lado estendia-se, à perda de vista, a imensa região das felicidades e das paixões."

Trecho 3
"Lembrou então as heroínas dos livros que lera e a legião lírica daquelas mulheres adúlteras pôs-se a cantar em sua memória com as vozes das irmãs que a encantavam. Ela mesma tornava-se como uma parte real daquelas imagens e realizava o longo devaneio de sua juventude vendo-se como aquele tipo de amante que tanto desejara ser. Aliás, Emma sentia uma satisfação vingativa. Não sofrera suficientemente? Porém triunfava agora e o amor, por tanto tempo contido, jorrava inteiro com alegre agitação. Ela o saboreava sem remorsos, sem inquietação, sem perturbação"

Trecho 4
"Não tinha mais, como outrora, aquelas palavras tão doces que a faziam chorar nem aquelas veementes carícias que a enlouqueciam; de forma que o grande amor de ambos, em que ela vivia mergulhada, parecia diminuir como a água de um rio que era absorvida em seu proprio leito, e ela percebeu o lodo."

Trecho 5
"Quanto à lembrança de Rodolphe, ela a colocara bem no fundo do coração; e lá permanecia mais solene e mais imóvel do que a múmia de um rei num subterrâneo. Daquele grande amor embalsamado escapava-se uma exalação que, passando através de tudo, perfumava de ternura a atmosfera de pureza em que desejava viver. Quando se ajoelhava no genuflexório gótico, dirigia ao Senhor as mesmas palavras de suavidade que murmurava outrora ao amante nas efusões do adultério. Era para provocar a fé; mas nenhum deleite descia dos céus e ela levantava-se novamente, com os membros cansados, com um vago sentimento de um imenso logro. Aquela procura, pensava, não deixava de ser um mérito a mais e, no orgulho de sua devoção, Emma comparava-se àquelas grandes damas de outrora com cuja glória sonhara olhando o retrato de La Vallière e que, arrastando com tanta majestade a cauda agaloada de seus longos vestidos, retiravam-se para a solidão para espalhar aos pés do Cristo todas as lágrimas de um coração ferido pela existência."

Trecho 6
"(...) a difamação daqueles que amamos sempre nos afasta deles um pouco. Não se deve tocar nos ídolos: a douradura acaba ficando em nossas mãos."

Trecho 7
"Não importa! ela não era feliz, nunca o fora. De onde vinha então aquela insuficiência da vida, aquela repentina podridão instantânea das coisas em que se apoiava? (...) Oh! Que impossibilidade! Nada, aliás, valia o trabalho da procura; tudo mentia! Cada sorriso escondia um bocejo de tédio, cada alegria uma maldição, qualquer prazer um desgosto e os melhores beijos deixavam nos lábios apenas um irrealizável desejo de uma maior volúpia.
Um estertor metálico arrastou-se nos ares e quatro pancadas ouviram-se no sino do convento. Quatro horas! E tinha a impressão de estar lá, naquele banco, desde a eternidade. Porém um infinito de paixões pode caber num minuto, como uma multidão num pequeno espaço."

Trecho 8
"Conheciam-se demais para sentir aqueles espantos da posse que centuplicam sua alegria. Ela estava tão enfastiada dele quanto ele estava cansado dela. Emma encontrava no adultério toda a insipidez do casamento."

Trecho 9
"(...) de todas as borrascas que se abatem sobre o amor, um pedido pecuniário é a mais fria e a mais devastadora."

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