sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O Tipo de Homem que Eu Sou

Agora é necessário que eu deva dizer que tipo de homem sou. O meu nome não importa, nem qualquer outro pormenor exterior particular acerca de mim. Do meu carácter alguma coisa deve ser dita. 

Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim, todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, uma incerteza para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo é significado. Todas as coisas são «desconhecidos» simbólicos do Desconhecido. Consequentemente horror, mistério, medo supra-inteligente. 
Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo enquadramento da minha juventude, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isso eu sou das espécies internas de caráter, auto-centrado, mudo, não auto-suficiente mas auto-perdido. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror de, na incapacidade que permeia tudo o que me é, fisicamente e mentalmente, por actos decisivos, por pensamentos definidos. Eu nunca tive uma resolução nascida de uma auto-determinação, nunca uma traição externa de uma vontade consciente. Nenhum dos meus escritos foi terminado; novos pensamentos sempre se intrometeram, provocando associações de ideias tendo o infinito por termo. Eu não posso evitar o ódio do meu pensamento ao término; sobre uma única coisa tenho dez mil pensamentos, e dez mil inter-associações destes dez mil pensamentos surgem, e não tenho vontade de os eliminar ou prendê-los, nem para reuni-los num pensamento central, onde os seus detalhes sem importância, mas associados, podem ser perdidos. Eles passam em mim; eles não são os meus pensamentos, mas os pensamentos que passam por mim. Eu não pondero, eu sonho, eu não me inspiro, eu deliro. Eu posso pintar, mas nunca pintei; eu posso compor música, mas eu nunca compus. Concepções estranhas em três artes, belos traços de imaginação acariciam o meu cérebro, mas eu deixo que eles durmam lá até morrerem, porque não tenho poder para lhes dar corpo, para torná-los coisas do mundo exterior. 
O carácter da minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definitivos. A idéia de uma solução a ser encontrada para os problemas, os mais elevados, os mais nobres, da ciência, da filosofia, aflige-me; que alguma coisa possa ser determinada de Deus ou do mundo horroriza-me. Que as coisas da maioria dos momentos devem ser feitas, que o um dia todos os homens sejam felizes, que uma solução possa ser encontrada para os males da sociedade, mesmo em termos de conceito, enlouquecem-me. No entanto, eu não sou mau nem cruel; eu sou louco, e, como tal, difícil de conseguir conceber alguma coisa. 
Embora eu tenha sido um leitor voraz e ardente, não me lembro de nenhum livro que li, até agora a minha leitura foram estados da minha própria mente, os sonhos de mim próprio, ou melhor, provocações de sonhos. A minha própria memória dos acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Tremo só de pensar o quão pouco eu tenho na minha mente acerca do que a minha vida passada tem sido. Eu, o homem que diz que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje. 

Fernando Pessoa, 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação

Conhecer-se é Errar

O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra. 

Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse «Conhece-te» propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão. 
Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar. 

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego