terça-feira, 27 de outubro de 2015

A Solidão

Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos. 

(José Saramago, in 'O Ano da Morte de Ricardo Reis).

A Individualidade das Nossas Sensações

Nesta era metálica dos bárbaros só um culto metodicamente excessivo das nossas faculdades de sonhar, de analisar e de atrair pode servir de salvaguarda à nossa personalidade, para que se não desfaça ou para nula ou para idêntica às outras. 

O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas. O que há de comum nas sensações é que forma a realidade. Por isso a nossa individualidade nas nossas sensações está só na parte errônea delas. 
A alegria que eu teria se visse um dia o sol escarlate. 
Seria tão meu aquele sol, só meu! 
(Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego).
Mesmo esquecendo, meu ser lembrará de ti
nas cousas
ou coisas que esqueceste, 
quando fostes embora...
Fisicamente, teu cheiro.
 O que ficou foi pensamento... 
Glória... 
Êxtase...

Lembrarei de ti, na escuridão de meus dias ensolarados,
 no abandonar e deixar partir
com certezas de não existir volta e, 
clamar um dia depois para que retornes...
Entrastes por portas que não devias, Tirastes a casca de machucados já cicatrizados...
risos
ou devias ter feito pousada, criado raízes, ter feito moradia...
Solidão perversa? 
Não. 
Prazeroso é lembrar, ter bebido de ti, mas saber que sua energia vital se mantêm...
Que as maléficas intenções de prisão nunca irão te conter,
Sem asas tens alcançado voo, sem medo de se jogar, pela incerteza do para-quedas...
Liberdade provinciana, 
Que não podes se manter intacta, vivendo sobre a égide de meus braços...
Pouco é o que sobrou...
mas, de tamanho superior a tudo que já tive
ou espero como bondade do mundo...
Gratidão
Que se resigna em um interagir constante...
                                                                                                ( E.A.A).

A Liberdade é a Possibilidade do Isolamento

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. 
E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo. 
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela. 

Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego' 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O Princípio Fundamental da Sociedade

Abster-se reciprocamente de ofensas, da violência, da exploração, adaptar a sua própria vontade à de outro: tal coisa pode, num certo sentido tosco, tornar-se bom costume entre indivíduos, se existirem condições para tal (a saber, semelhança efectiva entre as suas quantidades de força e entre as suas escalas de valores e a homogeneidade dos mesmos dentro de um só organismo). Logo que, porém, se quisesse alargar este princípio, concebendo-o até como príncipio fundamental da sociedade, revelar-se-ia imediatamente como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e de decadência. Aqui é preciso pensar-se bem profundamente e defender-se de toda a fraqueza sentimentalista: a própria vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição daquilo que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e pelo menos, na melhor das hipóteses, exploração, - mas para que empregar palavras a que, desde há muito, se deu uma intenção difamadora?

Também aquele organismo dentro do qual conforme acima se admitiu, os indivíduos se tratam como iguais - e tal se dá em toda a aristocracia sã -, tem de fazer, no caso de ser um organismo vivo e não moribundo, ao enfrentar outros organismos, tudo o que os indivíduos dentro dele se abstêm de fazer entre si: terá de ser a vontade de poder personificada, quererá crescer, expandir-se, atrair a si, obter preponderância, - não por qualquer moralidade ou imoralidade, mas porque vive e porque a vida é cabalmente vontade de poder.

Friedrich Nietzsche, in 'Para Além de Bem e Mal'

Vergilio Ferreira

"Há dentro de nós a exigência absoluta de sermos eternos e a certeza de o não sermos. O absurdo é a centelha do contato destes dois opostos"