terça-feira, 1 de dezembro de 2015

 

 Nós somos casas muito grandes, muito compridas. É como se morássemos apenas num quarto ou dois. Às vezes, por medo ou cegueira, não abrimos as nossas portas. 

(Antonio Lobo Antunes).


sábado, 21 de novembro de 2015

Rubem Alves.

Os portugueses se horrorizaram ao saber que os índios matavam as pessoas e as comiam. Os índios se horrorizaram ao saber que os portugueses matavam as pessoas e não as comiam. Tudo depende do ponto de vista.

ESSE EST PERCIPERE AUT PERCIPI

Ilusionismos
Há séculos, reflexões e escritos procuram estabelecer algum parâmetro que permita dizer com certeza que aquilo que vemos, pensamos ou sentimos existe
Em 1980, o essencial Carlos Drummond de Andrade, já com 78 anos de idade, publicou o livro "A Paixão Medida" e nele inseriu uma provocação poética chamada "A Suposta Existência". Nas duas estrofes iniciais está o desafio: "Como é o lugar / quando ninguém passa por ele? / Existem as coisas / sem ser vistas? / O interior do apartamento desabitado, / a pinça esquecida na gaveta, / os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto, / a formiga sob a terra no domingo, / os mortos, um minuto / depois de sepultados, / nós, sozinhos / no quarto sem espelho?".
Ora, uma das mais antigas indagações humanas diz respeito à concretude e à existência efetiva do real; há séculos, reflexões e escritos procuram, tanto no Ocidente quanto no Oriente, estabelecer algum parâmetro que permita dizer com certeza que aquilo que vemos, experimentamos, pensamos ou sentimos existe de fato, não sendo apenas pura imaginação delirante ou ficção passageira. É clássica uma pequena história, de muitos e diferentes modos recontada, que diz ter um sábio chinês adormecido e sonhado que era uma borboleta. No sonho, a borboleta também dorme e sonha ser um sábio chinês. Quando acordam quem acorda? Quem acorda transformado em quê? Quem era quem ao despertar? Qual era a realidade e qual era o sonho?
Pode parecer perda de tempo refletir sobre coisas assim, mas a construção de referências confiáveis para qualquer ação ou pensamento é exatamente a base sobre a qual se assentam as elaborações da arte, da filosofia, da religião e da ciência. Por isso, no século 18, o bispo e filósofo irlandês George Berkeley também procurava uma referência confiável, especialmente para sustentar sua defesa extremada da supremacia do espírito sobre a matéria. Encontrou-a em um axioma latino (embora pudesse ser uma máxima publicitária atual): "Esse est percipere aut percipi" (ser é perceber e ser percebido). O que não é percebido não existe, ou seja, o que não é notado e distinguido perde efetividade.
Em 1944, o pensador francês Jean-Paul Sartre escreveu "Entre Quatro Paredes", uma de suas mais provocadoras peças de teatro. Encenada com adaptações diversas pelo mundo afora, tem um enredo básico: três pessoas que não se conhecem, sendo duas mulheres (a insolente Inês e a fútil Estelle) e um homem (o acovardado Garcin), morrem e, para surpresa completa, vão parar em um cômodo fechado, sem janelas, sem espelhos e quase sem móveis; ali, queiram ou não, terão de conviver por tempo indefinido e, é claro, de suportar-se obrigatória e reciprocamente.
Naquele lugar, o amanhã é sempre a eternidade da presença detestável de outras pessoas com as quais não se quer estar, mas não há como escapar dessa condição (como acontece com muita gente em férias forçadas, em famílias impostas, em casamentos cínicos, em empregos enfadonhos, em lazeres alienantes ou em feriados prolongados).
É nessa peça que se encontra o famoso e nem sempre incorreto vaticínio: "O inferno são os outros". Metáfora da vida contemporânea (já naquela época), a peça inquieta profundamente o mundo das plastificadas convenções sociais, das muitas e tolas vaidades estéticas, das perigosas elasticidades morais e, como complemento sólido, é um desesperador passeio pelo reino das hipocrisias, imposturas e dissimulações das quais somos capazes na breve existência. Há uma cena marcante para demonstrar a parceria entre a futilidade e o desprezo intencional: como não havia espelhos no cômodo -para a aflição da vaidosa Estelle-, esta precisa que as duas pessoas digam a ela como está a sua aparência. Nada dizem. Calam e a torturam com o silêncio, impedindo que saiba por outros como está ela mesma.
A ressurreição eventual do pensamento de Berkeley vem sendo feita de modo hiperbólico, exagerado, exaltado. Não é raro nos depararmos com aqueles que sucumbem aos apelos sombrios oriundos de algumas mídias que proclamam a importância de sermos vitimados por celebridades provisórias, famas instantâneas e personalidades velozmente dissolúveis. Parece que a única regra é ser percebido.
Riquezas aparentes, misérias reais...


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo.

Passagem das Horas - Fernando Pessoa.

"Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto de apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida."

"ando muito completo de vazios.
meu órgão de morrer
me predomina.
estou sem eternidades
não posso mais saber
quando amanheço ontem.
está rindo de mim o amanhecer.
ouço o tamanho oblíquo de uma folha
atrás do ocaso foram os insetos.
enfiei o quanto que pude
dentro de um grilo o meu destino
essa coisas me mudam para cisco.
a minha independência tem algemas."

(Manoel de barros, in 'ignorãças'1993)
É próprio de minha pequenez de espírito, alcançar com dedos táteis e sufocantes,
no que erramos ao querer se dar?
 mas aos poucos, sem se permitir ou só por alguns instantes... 
Aliviar angústias,
 suprir necessidades.
escarro, penúria.
 Preocupar-se consigo e com o que parece vital.
 Necessário!
Ora, que importa se outros descalçaram sapatos para não ofender nossa fragilidade religiosa, nossas crenças  e anseios... Nosso âmago...
Dane-se o mundo
e, dane se os outros...
 De o meu egoísmo.
 Se entregue por essa noite. Vá embora ou sequer apareça.
Não há importância em sua história, sequer eu a tenho,
 o pouco da minha identificação,
você tem carregado, nas plaquetas de um exército que sequer disparei um tiro... os guardei esperando que morresse um dia, mas, como saber se estou vivo ainda,
 na ilusão de concretudes...
por sua boca, entrou o que não foi sentido no olhar... 
fugacidade
em nossas bobagens literais, filosofias toscas, apoiadas em livros, sendo externo a eles também.
 Confesse seus piores defeitos e 
promiscuidades... dúvidas...
queira a realidade triste, de não saber se é verdade,
se sempre foi intenso ou se nunca fomos personificados de nada,
 para aprender de fora o que também não se consegue olhar por dentro!!!


“Parece improvável que a humanidade em geral seja algum dia capaz de dispensar os ‘paraísos artificiais’, isto é, [...] a busca de auto transcendência através das drogas ou [...] umas férias químicas de si mesmo...
a maioria dos homens e mulheres levam vidas tão dolorosas - ou tão monótonas, pobres e limitadas, que a tentação de transcender a si mesmo, ainda que por alguns momentos, é e sempre foi um dos principais apetites da alma.”

(Aldous Huxley, escritor inglês)
Foucault afirma, o discurso da repressão parece ser ele mesmo coberto por uma aura de transgressão, como se o próprio falar de sexo e de sua proibição estivesse fora do alcance da lei. Como se fosse em si mesmo um ato revolucionário que promete um futuro libertador (e prazeroso). Isso explicaria toda a gama de sutilezas encontradas ao tratar do sexo em termos de repressão. Na solenidade das falas, na pose, no tom de voz, cheios de consciência da subversão. Como uma pregação, denunciando hipocrisias, revelando uma verdade, prometendo uma felicidade vindoura: “o enunciado da opressão e a forma de pregação referem-se mutuamente; reforçam-se reciprocamente”. 
(FOUCAULT, 1988, p. 13).

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

" QUANDO REFLITO SOBRE A BREVE DURAÇÃO DA MINHA VIDA, ABSORVIDA NA ETERNIDADE ANTERIOR E NA ETERNIDADE POSTERIOR, NO PEQUENO ESPAÇO QUE OCUPO, E MESMO NO QUE VEJO, FUNDIDO NA IMENSIDÃO DOS ESPAÇOS QUE IGNORO E QUE ME IGNORAM, ATERRO-ME E ASSOMBRO-ME DE VER-ME AQUI E NÃO EM OUTRA PARTE, UMA VEZ QUE NÃO EXISTE MOTIVO NENHUM PARA QUE EU ESTEJA AQUI E NÃO ALHURES, NESTE MOMENTO E NÃO EM OUTRO MOMENTO QUALQUER. QUEM ME COLOCOU EM TAIS CONDIÇÕES ??? POR ORDEM E OBRA DE QUEM ME FORAM DESIGNADOS ESTE LUGAR E ESTE MOMENTO ???
( PASCAL ).
"Enquanto um indivíduo reconhecer os pontos fortes e fracos de sua teoria, de sua arte, de sua religião, sua força ainda é escassa. O discípulo e o apóstolo que não tem olhos para a fraqueza da teoria, da religião e assim por diante, ofuscado pelo prestígio de seu mestre e por sua devoção para com ele, tem, por isso, habitualmente mais poder que o mestre. Sem os discípulos cegos, a influência de um homem e de sua obra nunca conseguiu ainda se difundir. Muitas vezes, ajudar no triunfo de uma ideia significa apenas associá-la tão fraternalmente com a estupidez, que o peso da última se torna também obrigatória a vitória da primeira". ( NIETZSCHE ).

domingo, 1 de novembro de 2015

A Globalização é uma Nova Forma de Totalistarismo

A globalização económica é compatível com os direitos humanos? Temos de fazer esta pergunta a nós próprios e ver que a resposta é que ou há globalização ou há direitos, por mais que os poderes tenham a hipocrisia de dizer que a globalização favorece os direitos humanos, quando o que faz é fabricar excluídos. A globalização é simplesmente uma nova forma de totalitarismo que não tem de chegar sempre com uma camisa azul, castanha ou negra e com o braço erguido; tem muitas caras e a globalização é uma delas. Devíamos voltar a Marx e a Engels para reverter a situação, ainda que seja pouco menos que politicamente incorrecto referirmo-nos a estes cadáveres da história quando a ideologia parece que morreu. 


José Saramago, in 'Turia (2001)'

A quem censurar?


Cada vez que me deparo com noticias que nos expõe enquanto um todo, enquanto sociedade, e tem sido muitas,  me pergunto com qual consciência tranquila e limpa estamos "cobrando" nossos políticos. 

Podemos argumentar, que essa noticia abaixo por exemplo, fala de uma parte de um todo, o que pode mesmo ser visto como verdade; mas, pensando friamente, em nossos pequenos atos, nossas pequenas corrupções diárias, deslizes... Um estacionar em vaga proibida, compra e venda de produtos, que são feitos com mão de obra análogas a escravidão, o sentar se em ônibus nos lugares de grávidas, idosos ou deficientes físicos, nosso não comungar de verdade com a dor ou miserabilidade dos outros, furar fila, vantagens indevidas, desrespeito e falta de gentileza no trânsito. delações...  Moralismo? Não. Sei que não há perfeição em mim, também faço parte de erros, aos quais me proponho ver; porém percebo que enquanto população, mudaremos muitas coisas, quando começarmos as mudanças através de nós mesmos. Claro que políticos corruptos devem ser julgados e presos e, que haja mesmo eficiência nessas prisões, para acabarmos com a ideia histórica da cadeia que só funciona para pobres e desfavorecidos. Mas, urgentemente, precisamos resolver nossa crise moral, ou seria ética?

 Gato" preocupante: 4,5 milhões de lares roubam serviço de TV paga no país


Colunas - Flavio Ricco
O malfeito é, entre tantos e enormes problemas, o maior na vida de todos os brasileiros. Nas várias crises que de vez em quando aparecem, como é o caso da atualmente em cartaz, sempre existe a preocupação em se levantar as mesmas e velhas questões que atormentam este país antes mesmo de Pedro Álvares Cabral botar os pés por aqui.

Quando, um dia, Pelé disse que o brasileiro não sabia votar, o mundo caiu na cabeça dele. Hoje, se constata, que até agora não aprendemos, caso contrário não estaríamos tão mal representados como sempre estivemos. Há um preço para toda escolha ruim. Quem consegue rapidamente se lembrar em qual vereador, deputado estadual ou federal e mesmo senador votou nas últimas eleições?

E aí se reclama de impostos cada vez mais altos, saúde e educação deficientes, transporte ruim, segurança que não existe e tantas outras carências em setores essenciais.

Mas alguém já parou para perguntar a si mesmo se está fazendo a sua parte? Evidente que o problema é muito amplo, mas só naquilo que nos diz respeito, como admitir que 4,5 milhões de lares brasileiros "gatunam" o serviço de TV paga? Este é um dado oficial. E, conforme levantamentos, é um universo que atinge as mais diferentes classes de pessoas, até mesmo aquelas que têm condições de contratar os trabalhos de uma operadora.

Convenhamos

Televisão não é produto de primeira necessidade na vida de ninguém.

Mas roubar os serviços de uma operadora é crime. Dá cadeia. A Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA) e a Receita Federal do Brasil firmaram termo de cooperação para destruir milhares de decodificadores ilegais de TV paga que são apreendidos na região Sul do Brasil.

Sol com a peneira
 

A pirataria e a ilegalidade estão incrustadas na vida de algumas pessoas. As que querem tirar vantagem em tudo, e não se importam em prejudicar o próximo.

Que este termo de cooperação produza os efeitos que pretendemos. Exercer maior patrulha na tríplice fronteira já é um passo bem significativo, mas que também nos leva a esperar por outros. Que tal um "passeio" na Santa Efigênia.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

A Solidão

Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos. 

(José Saramago, in 'O Ano da Morte de Ricardo Reis).

A Individualidade das Nossas Sensações

Nesta era metálica dos bárbaros só um culto metodicamente excessivo das nossas faculdades de sonhar, de analisar e de atrair pode servir de salvaguarda à nossa personalidade, para que se não desfaça ou para nula ou para idêntica às outras. 

O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas. O que há de comum nas sensações é que forma a realidade. Por isso a nossa individualidade nas nossas sensações está só na parte errônea delas. 
A alegria que eu teria se visse um dia o sol escarlate. 
Seria tão meu aquele sol, só meu! 
(Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego).
Mesmo esquecendo, meu ser lembrará de ti
nas cousas
ou coisas que esqueceste, 
quando fostes embora...
Fisicamente, teu cheiro.
 O que ficou foi pensamento... 
Glória... 
Êxtase...

Lembrarei de ti, na escuridão de meus dias ensolarados,
 no abandonar e deixar partir
com certezas de não existir volta e, 
clamar um dia depois para que retornes...
Entrastes por portas que não devias, Tirastes a casca de machucados já cicatrizados...
risos
ou devias ter feito pousada, criado raízes, ter feito moradia...
Solidão perversa? 
Não. 
Prazeroso é lembrar, ter bebido de ti, mas saber que sua energia vital se mantêm...
Que as maléficas intenções de prisão nunca irão te conter,
Sem asas tens alcançado voo, sem medo de se jogar, pela incerteza do para-quedas...
Liberdade provinciana, 
Que não podes se manter intacta, vivendo sobre a égide de meus braços...
Pouco é o que sobrou...
mas, de tamanho superior a tudo que já tive
ou espero como bondade do mundo...
Gratidão
Que se resigna em um interagir constante...
                                                                                                ( E.A.A).

A Liberdade é a Possibilidade do Isolamento

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. 
E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo. 
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela. 

Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego' 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O Princípio Fundamental da Sociedade

Abster-se reciprocamente de ofensas, da violência, da exploração, adaptar a sua própria vontade à de outro: tal coisa pode, num certo sentido tosco, tornar-se bom costume entre indivíduos, se existirem condições para tal (a saber, semelhança efectiva entre as suas quantidades de força e entre as suas escalas de valores e a homogeneidade dos mesmos dentro de um só organismo). Logo que, porém, se quisesse alargar este princípio, concebendo-o até como príncipio fundamental da sociedade, revelar-se-ia imediatamente como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e de decadência. Aqui é preciso pensar-se bem profundamente e defender-se de toda a fraqueza sentimentalista: a própria vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição daquilo que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e pelo menos, na melhor das hipóteses, exploração, - mas para que empregar palavras a que, desde há muito, se deu uma intenção difamadora?

Também aquele organismo dentro do qual conforme acima se admitiu, os indivíduos se tratam como iguais - e tal se dá em toda a aristocracia sã -, tem de fazer, no caso de ser um organismo vivo e não moribundo, ao enfrentar outros organismos, tudo o que os indivíduos dentro dele se abstêm de fazer entre si: terá de ser a vontade de poder personificada, quererá crescer, expandir-se, atrair a si, obter preponderância, - não por qualquer moralidade ou imoralidade, mas porque vive e porque a vida é cabalmente vontade de poder.

Friedrich Nietzsche, in 'Para Além de Bem e Mal'

Vergilio Ferreira

"Há dentro de nós a exigência absoluta de sermos eternos e a certeza de o não sermos. O absurdo é a centelha do contato destes dois opostos"

 

domingo, 26 de julho de 2015

Metade.

Defeitos, tristezas e aborrecimentos...
Alegrias constantes, as vezes efêmeras. Felicidade.
Não sabia muito de si, pois negava o conhecimento, não por ser ignorante as cousas, mas por ser alheio ao que era sabido. Por sua melhor interação ser a busca.
Não podia satisfazer expectativas.
Pensava tão pouco sobre si, sobre a realidade a volta...
Aflições.
Vivia, aprendeu desde muito cedo,
Metade dele era o que ele mesmo era. Insano, estranho, inconstante.
 Procurou deixar questões puras para os outros, para os sábios.
sonhos grandes para os distantes, vozes aos falantes...
De repente se descobriu inteiro, completo, intenso.

Metades...

Por saber que era muito, que era nada, que era tudo
Que os adjetivos eram poucos...
Mas,
que não podia se violar,
somente porque era riso. Para não morrer por suas
verdades.

(E.A.A).

terça-feira, 16 de junho de 2015

Nada é mais repugnante do que a maioria, pois ela compõe-se de uns poucos antecessores enérgicos; velhacos que se acomodam; de fracos, que se assimilam, e da massa que vai atrás de rastros, sem nem de longe saber o que quer.
( Johann Goethe).


Limitado mas Completo

O indivíduo mais limitado pode ser completo, se se move dentro das fronteiras das suas capacidades e das suas disposições pessoais. Pelo contrário, acontece que aquilo que noutros são qualidades incomparáveis, podem ser obscurecidas, apagadas ou mesmo aniquiladas, se se desfaz aquele equilíbrio imprescindível. E este mal há-de tornar-se ainda mais evidente nos tempos modernos; pois quem será capaz de satisfazer as exigências de um presente que não pára de crescer e que aliás cresce cada vez mais depressa? 

Johann Wolfgang von Goethe, in "Máximas e Reflexões" 

A Idade não nos Torna mais Sábio

As pessoas imaginam que precisamos de chegar a velhos para ficarmos sábios, mas, na verdade, à medida que os anos avançam, é difícil mantermos-nos tão sábios como éramos. De facto, o homem torna-se um ser distinto em diferentes etapas da vida. Mas ele não pode dizer que se tornou melhor, e, em alguns aspectos, é igualmente provável que ele esteja certo aos vinte ou aos sessenta. Vemos o mundo de um modo a partir da planície, de outro a partir do topo de uma escarpa, e de outro ainda dos flancos de uma cordilheira. De alguns desses pontos podemos ver uma porção maior do mundo que de outros, mas isso é tudo. Não se pode dizer que vemos de modo mais verdadeiro de um desses pontos que dos restantes. 


Johann Wolfgang von Goethe, in 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Não lamento os homens, os homens refazem-se; não lamento o ouro destes tesouros, os tesouros voltam a encher-se; mas quem restituirá a estes povos os anos que vão passando?  

Denis Diderot 

O Ateu é Deus


Deus não existe (...) A salvação de todos consiste agora em provar essa ideia a toda a gente, percebes? Quem é que há-de prová-la? Eu! Não entendo como é que até agora um ateu podia saber que Deus não existe e não se suicidava logo. Reconhecer que Deus não existe e não reconhecer ao mesmo tempo que o próprio se tornou deus é um absurdo, pois de outra maneira suicidar-se-ia inevitavelmente. Se tu o reconheces, és um rei e não te matarás, mas viverás na maior glória. Mas só o primeiro a perceber isso é que deve inevitavelmente matar-se, senão o que é que principiaria e provaria? 

Sou eu que me vou suicidar para iniciar e para provar. Ainda só sou deus sem querer e sofro porque tenho o DEVER de proclamar a minha própria vontade. Todos são infelizes porque todos têm medo de afirmar a sua vontade. Se o homem até hoje tem sido tão infeliz e tão pobre, é precisamente porque tem tido medo de afirmar o ponto capital da sua vontade, recorrendo a ela às escondidas como um jovem estudante. 

Eu sou profundamente infeliz porque tenho medo profundamente. O medo é a maldição do homem... Mas hei-de proclamar a minha vontade, tenho o dever de crer que não creio. E serei salvo. Só isto salvará todos os homens e há-de transformá-los fisicamente, na geração seguinte; porque, no seu estado físico actual (reflecti nisso muito tempo), o homem não pode, de modo algum, passar sem o seu velho Deus. 

Durante três anos procurei o atributo da minha divindade e achei-o: o atributo da minha divindade é a minha vontade, é o livre arbítrio. É com isso que posso manifestar sobre o ponto capital a minha insubmissão e a minha terrível liberdade nova. Porque é terrível! Mato-me para afirmar a minha insubmissão e a minha terrível liberdade nova. 

Fiodor Dostoievski, in 'Os Possessos' (discurso do personagem Kirilov)

Os Pensamentos Intraduzíveis

É sabido que comboios completos de pensamento atravessam instantaneamente as nossas cabeças, na forma de certos sentimentos, sem tradução para a linguagem humana, menos ainda para uma linguagem literária... porque muitos dos nossos sentimentos, quando traduzidos numa linguagem simples, parecem completamente sem sentido. Essa é a razão pela qual eles nunca chegam a entrar no mundo, no entanto toda a gente os tem. 

Fiodor Dostoievski, in 'Uma Anedota Sórdida' 
Achar graça do que os outras acham...
 Rir, com dentes alheios. 
Com o riso, cobrir nossas mágoas, nosso desespero, nossa humanidade medíocre e mortal.

Com o riso alheio viver nossa vida social e, feliz
interagir
 e esconder nossas fraquezas, nós mesmos...

 Os seres resolvidos, inteiros... Verdadeiros.

Será?

Quando mostramos aos outros o que eles precisam, nos tornamos felizes? Melhores e
 distantes de julgamentos. 
Talvez, só numa alma com conhecimento da escuridão, seja possível, trazer chamas a uma vela...

Sorrisos, têm vindo de nosso âmago ou através das perspectivas dos outros?

Nós, os eternos seres felizes, descontentes...

Usemos a ferramenta de aproximação social. Afinal, Como diz o enunciado:


- Sorria você esta sendo filmado.
                                                                             ( E.A.A)
Passa o tempo para felicidades alheias
e de finais de semana...

Galho Seco - Zé Geraldo Acústico 1998

sábado, 6 de junho de 2015

Cursos de vivência indígena: Valorização da cultura ou um Produto para o mercado?

05 de Junho de 2015
A demanda pela busca de cursos de vivência indígena cresceu, com a popularidade de algumas iniciativas e encontros multiétnicos espalhados não apenas pelo Brasil mas no mundo.

O que mais chama atenção do público é a oportunidade de conhecer diferentes culturas indígenas. As cores, fotos e convites em cenários com paisagens naturais deslumbrantes desperta curiosidade de consumidores culturais que em sua maioria desconhecem os impactos causados nas culturas. Existe muita diversidade de povos e culturas no Brasil, povos com diferentes tempos de contato, alguns séculos outros apenas poucos anos.

Iniciativas autônomas realizadas pelos próprios indígenas são importantes para autonomia, mas até que ponto as iniciativas de não indígenas em realizar pacotes de vivência é positiva para as populações ? Uma pergunta que vem sendo feita por muitas pessoas.

Em 2013 o agente agroflorestal, realizador indígena da etnia Huni Kuin e Associação do Povo Indígena do Rio Humaita (ASPIRH), Nilson Saboia, Tuwe Huni Kuin, escreveu um texto com depoimentos reflexivos sobre o que ocorre com os saberes espirituais de seu povo quando algumas pessoas em outras partes do país realizam cerimonias não autorizadas, realizadas por indígenas aliciados ou não indígenas.  

"São muitos os charlatões que tentam falar falsamente em nome de meu povo. Chega-se, inclusive, a criar um grande misticismo, falsas filosofias, biopirataria, rituais e vários outros artifícios para enganar pessoas que sentem um vazio nas suas vidas e tem um respeito pelos povos indígenas. O resultado é muito longe do esperado, tanto para as pessoas que procuram esse tipo de resposta que não resolvem seus problemas, quanto para os índios que são aliciados por gente mal intencionada.

Isso é parte de um enquadramento via mercado de meu povo. Onde isso deu certo com os Povos da Natureza? Na Ásia, na África, nas Américas, na Oceania? Existe um só lugar nesse vasto mundo que isso não resultou em escravidão (ou assalariamento precário), enganação, roubo de terras, mortes e perda de identidade dos povos originários?

Por trás disso tudo várias motivações: a intolerância, a ambição pelo lucro, a ignorância, a desfaçatez e etc. Sentimentos que meu povo originariamente não está acostumado a viver e sentir, frutos de uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem que nos impedem de alcançar a felicidade e a harmonia com nosso meio.

Nossa cultura não cabe num lugar que não seja nosso próprio mundo. Precisamos simplesmente ser nós mesmos em nossa própria Aldeia. Quando saímos desse universo é para mostrar que precisamos ser respeitados e não virar mercadoria ou peça de exposição. Nossa cultura fora de nosso próprio mundo só pode ser apresentado como uma resistência ao seu extermínio.

(There are many charlatans who try to speak falsely on behalf of my people. You reach the create a great mysticism, false philosophies, biopiracy, rituals and several other tricks to fool people who feel a void in their lives and have a respect for indigenous peoples. The result is far from the expected, both for people seeking this type of response that do not solve their problems, and the Indians who are enticed by malicious people. This is part of a framework via the market of my people. Where it worked with people of nature? In Asia, Africa, the Americas, Oceania? There is one place in this vast world that it did not result in slavery (or part-time wages), deception, theft, deaths and loss of identity of native peoples? Behind this several reasons: intolerance, greed for profit, the ignorance, the nerve and etc. Feelings that my people originally is not accustomed to live and feel, fruit of a society based on the exploitation of man by man that prevent us from achieving the happiness and harmony with our environment. Our culture does not fit in a place other than our own world. We need to just be ourselves in our own Village. When we came out of this universe is to show that we need to be respected and not to turn the goods or part of the exhibition. Our culture out of our own world can only be presented as a resistance to their extermination)", depoimento de Tuwe Huni Kuin em texto de sua autoria vinculado nas redes sociais em 2013.

O saber ancestral é sagrado para os povos indígenas, cerimonias não apenas religiosas mas também culturais vem sendo realizadas em muitos locais mas nem todas são autorizadas pelas comunidades ou lideranças dos povos. Mostrar a cultura por meio de vivências organizadas por não indígenas muitas vezes acaba atropelando em algum momento não apenas costumes mas a própria essência cultural indígena. É um tema polêmico e pouco exposto mas extremamente necessário para reflexão do público.

A banalização das culturas por meio de não indígenas é vista com preocupação por anciões que temem que indígenas não preparados passem a ver suas próprias culturas como meras representações teatrais no palco e mercado exótico não indígena. Mostrar a cultura é uma importante forma de difusão cultural mas é de extrema responsabilidade.

Muitos grupos de dança indígena realizam trabalhos de difusão cultural autorizados por suas comunidades ou lideranças. Em sua maioria indígenas e grupos autônomos realizam o trabalho de forma a contribuir para seus povos, o alvo de críticas vem sendo a apropriação de não indígenas e indigenistas como mentores de indígenas ou interlocutores em determinados projetos. É fundamental que aqueles que pagam valores muitas vezes elevados para viver essas vivências saibam como elas estão sendo realizadas e o que as comunidades, indígenas ou povos envolvidos ganham com isso ou não.

Redação Yandê

quinta-feira, 5 de março de 2015

Os Pseudo-Sábios

Os verdadeiros sábios perguntam como se comporta dada coisa em si mesma e na sua relação com outras coisas, sem se preocuparem com a utilidade, ou seja, com a aplicação no domínio do já conhecido ou no domínio daquilo que é necessário à vida. Há outros espíritos, gente bastante diferente, que, sendo mais agudos, mais virados para a vida, mais experimentados e familiarizados com a técnica, tratam imediatamente de encontrar as aplicações. 

Os pseudo-sábios procuram apenas retirar tão depressa quanto possível algum proveito pessoal das novas descobertas, tratando de obter uma glória vã, seja pela tentativa de dar continuidade ou alargamento à descoberta em causa, seja pela introdução de correcções, ou até por uma simples anexação pessoal, por exemplo, afetando grandes preocupações em relação ao assunto. O carácter sempre prematuro desses comportamentos prejudica a verdadeira ciência, traz-lhe maior incerteza e confusão, e atrofia-lhe manifestamente aquilo que ela pode produzir de mais belo, isto é, o seu florescimento prático. 

Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões'

Igualdade não é Liberdade

Todos os homens são iguais em sociedade. Nenhuma sociedade se pode fundamentar noutra coisa que não seja a noção de igualdade. Acima de tudo não pode fundamentar-se no conceito de liberdade. A igualdade é qualquer coisa que quero encontrar na sociedade, ao passo que a liberdade, nomeadamente a liberdade moral de me dispor à subordinação, transporto-a comigo. 

A sociedade que me acolhe tem portanto que me dizer: «É teu dever ser igual a todos nós». E não pode acrescentar mais que isto: «Desejamos que tu, com toda a convicção, de tua livre e racional vontade, renuncies aos teus privilégios». 
O nosso único passe de mágica consiste no facto de prescindirmos da nossa existência para podermos existir. 
A mais elevada finalidade da sociedade é consequência das vantagens que assegura a cada um. Cada um sacrifica racionalmente a essa consequência uma grande quantidade de coisas. A sociedade, portanto, muito mais. Por causa da dita consequência, a vantagem pontual de cada membro da sociedade anda perto de se reduzir a nada. 

Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões' 

O Tele-Lixo

Se a única coisa que oferecerem às pessoas for tele-lixo e omitirem que existem outras coisas, elas acreditarão que não existe mais nada para lá do lixo. Nestes momentos, a audiência é a rainha e por causa dela é lícito uma pessoa até matar a avó. Os meios de comunicação têm grande parte da responsabilidade nisto, embora seja necessário perguntar quem move os seus fios. Por detrás há sempre um banco ou um governo. Um jornal independente? Uma rádio livre? Uma televisão objectiva? Isso não existe. Essa mistura, o tele-lixo e os meios de comunicação dependentes, provoca que a sociedade esteja gravemente doente. 


José Saramago, in 'El Diario Montanés (2006)'

Estamos Neuróticos

Faz sentido que se esteja a enviar para o espaço uma sonda para explorar Plutão enquanto aqui as pessoas morrem de fome? Estamos neuróticos. Não só existe desigualdade na distribuição da riqueza como também na satisfação das necessidades básicas. Não nos orientamos por um sentido de racionalidade mínima. A Terra está rodeada de milhares de satélites, podemos ter em casa cem canais de televisão, mas para que nos serve isto neste mundo onde tantos morrem? É uma neurose colectiva, as pessoas já não sabem o que é que lhes é essencial para a sua felicidade. 


José Saramago, in 'Zero Hora (1997)' 

A Sociedade é um Sistema de Egoísmos Maleáveis

A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Como homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como indivíduo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens; e, porque se parece, agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual, em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão-somente que ser-lhes útil e agradável. Para estar na defensiva ou na ofensiva, tem ele que ver claramente o que os outros realmente são e o que realmente fazem, e não o que deveriam ser ou o que seria bom que fizessem. Para lhes ser útil ou agradável, tem que consultar simplesmente a sua mera natureza de homens. 
A exacerbação, em qualquer homem, de um ou o outro destes elementos leva à ruína integral desse homem, e, portanto, à própria frustração do intuito do elemento predominante, que, como é parte do homem, cai com a queda dele. Um indivíduo que conduza a sua vida em linhas de uma moral altíssima e pura acabará por ser ultrajado por toda a gente - até pelos indivíduos que, sendo também morais, o são com menos altura e pureza. E o despeito, a amargura, a desilusão, que corroem a natureza moral, serão os resultados da sua experiência. Mas também um indivíduo, que conduza a sua vida em linhas de um embuste constante, acabará, ou na cadeia, onde há pouco que intrujar, ou por se tornar suspeito a todos e por isso já não poder intrujar ninguém. 

Fernando Pessoa, in 'Os Preceitos Práticos em Geral e os de Henry Ford em Particular'

O Universo é o Sonho de um Sonhador Infinito

1. Não conhecemos senão as nossas sensações. O universo é pois um simples conceito nosso. 

2. O universo porém — ao contrário de e em contraste com, as nossas fantasias e os nossos sonhos — revela, ao ser examinado, que tem uma ordem, que é regido por regras sem excepção a que chamamos leis. 

3. À parte isso, o universo, ou grande parte dele, é um «conceito» comum a todos os que são constituídos como nós: isto é, é um conceito do espírito humano. 
4. O universo é considerado objectivo, real — por isso e pela própria constituição dos nossos sentidos. 
5. Como objectivo, o universo é pois o conceito de um espírito infinito, único que pode sonhar de modo a criar. O universo é o sonho de um sonhador infinito e omnipotente. 
6. Como cada um de nós, ao vê-lo, ouvi-lo, etc., cria o universo, esse espírito infinito existe em todos nós. 
7. Como cada um de nós é parte do universo, esse espírito infinito, ao mesmo tempo que existe em nós, cria-nos a nós. Somos distintos e indistintos dele. 
8. A «Causa imanente», como é definida, tem que, ao criar, criar infinitamente. Em si mesma é infinita como uma, extra-numericamente; nos seres é infinita como inúmera, numericamente. Num caso é o indivisível, no outro infinitamente divisível. As almas são pois em número infinito. 
9. Tudo o que é criado é infinito, pois a Causa Infinita não pode criar senão infinito. Por isso tudo material, se tudo de natureza oposta à Causa Infinita, é infinitamente divisível e multiplicável (eternidade do tempo, infinidade do espaço). Só pode criar finitos em número infinito. Por isso tudo espiritual, isto é, não-espacial, como é da natureza da Causa, é indivisível. É portanto imortal. 

Fernando Pessoa, ' Textos Filosóficos' 

quarta-feira, 4 de março de 2015


"Todos os que desfrutam acreditam que na árvore o que importa é o fruto, quando na verdade o que importa é a semente: eis a diferença entre os que desfrutam e os que crêem.”
Friedrich Nietzsche
“O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto – não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar?”
— Slavoj Žižek, “O circulo de giz de Jerusalém”.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Disponibilidade Vazia

O cigano foi-se confessar; mas o padre, precavido, começou por interrogá-lo sobre os mandamentos de Deus. Ao que o cigano respondeu: «Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que tinha perdido o valor». (...) Todo o mundo – nações, indivíduos – está desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização diverte e até vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo em que eram inscritos sobre pedra ou bronze oseu carácter de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pôr em alguém algo nas mãos. Quem manda é, sem remissão, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro já estão fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem, e aproveitam com ar festivo este tempo de pesados imperativos. Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta é a horrível situação íntima em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma vida em disponibilidade é maior negação que a morte. Porque viver é ter que fazer algo determinado – é cumprir um encargo –, e na medida em que iludamos pôr em algo a nossa existência, desocupamos a nossa vida. Dentro em pouco ouvir-se-á um grito formidável em todo o planeta, que subirá, como uivo de cães inumeráveis, até as estrelas, pedindo alguém e algo que mande, que imponha um afazer ou obrigação. 

Ortega y Gasset, in 'A Rebelião das Massas'

A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. 

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra? 
Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. 
Falamos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixamos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 

José Saramago, in 'Diálogos com José Saramago' 

Confissão Social

Ninguém tem qualquer interesse em saber isto; mas se eu tivesse de me confessar socialmente, a síntese do meu desespero era esta: que cheguei, em matéria de descrença no homem, à saturação. 
E, contudo, este perdido, este condenado, merece-me uma ternura tal, que não há tolice que faça, asneira que invente, mentira que diga que me deixem indiferente. Tenho por força de olhar, reparar, ouvir, e comentar com toda a paixão de que sou capaz. 

Miguel Torga, in "Diário 1942"

O Cinismo dos Valores

Cada vez mais desesperado. Olho, olho, e só vejo negrura à minha volta. Fé? Evidentemente... Enquanto há vida, há esperança — lá diz o outro. Mas, francamente: fé em quê? Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra mos cobrir! — Ah! mas a humanidade acaba por encontrar o seu verdadeiro caminho — dizem-me duas células ingénuas do entendimento. E eu respondo-lhes assim : Não, o homem não tem caminhos ideais e caminhos de ocasião. O homem tem os caminhos que anda. Ora este senhor, aqui há tempos, passou três séculos a correr atrás dum mito que se resumia em queimar, expulsar e perseguir uns outros homens, cujo pecado era este: saber filosofia, medicina, física, astronomia, religião, comércio — coisas que já nessa época eram dignas e respeitáveis. 

Miguel Torga, in Diario

O Ateu é Deus

Deus não existe (...) A salvação de todos consiste agora em provar essa ideia a toda a gente, percebes? Quem é que há-de prová-la? Eu! Não entendo como é que até agora um ateu podia saber que Deus não existe e não se suicidava logo. Reconhecer que Deus não existe e não reconhecer ao mesmo tempo que o próprio se tornou deus é um absurdo, pois de outra maneira suicidar-se-ia inevitavelmente. Se tu o reconheces, és um rei e não te matarás, mas viverás na maior glória. Mas só o primeiro a perceber isso é que deve inevitavelmente matar-se, senão o que é que principiaria e provaria? 

Sou eu que me vou suicidar para iniciar e para provar. Ainda só sou deus sem querer e sofro porque tenho o DEVER de proclamar a minha própria vontade. Todos são infelizes porque todos têm medo de afirmar a sua vontade. Se o homem até hoje tem sido tão infeliz e tão pobre, é precisamente porque tem tido medo de afirmar o ponto capital da sua vontade, recorrendo a ela às escondidas como um jovem estudante. 

Eu sou profundamente infeliz porque tenho medo profundamente. O medo é a maldição do homem... Mas hei-de proclamar a minha vontade, tenho o dever de crer que não creio. E serei salvo. Só isto salvará todos os homens e há-de transformá-los fisicamente, na geração seguinte; porque, no seu estado físico actual (reflecti nisso muito tempo), o homem não pode, de modo algum, passar sem o seu velho Deus. 

Durante três anos procurei o atributo da minha divindade e achei-o: o atributo da minha divindade é a minha vontade, é o livre arbítrio. É com isso que posso manifestar sobre o ponto capital a minha insubmissão e a minha terrível liberdade nova. Porque é terrível! Mato-me para afirmar a minha insubmissão e a minha terrível liberdade nova. 

Fiodor Dostoievski, in 'Os Possessos' (discurso do personagem Kirilov)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O Tipo de Homem que Eu Sou

Agora é necessário que eu deva dizer que tipo de homem sou. O meu nome não importa, nem qualquer outro pormenor exterior particular acerca de mim. Do meu carácter alguma coisa deve ser dita. 

Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim, todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, uma incerteza para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo é significado. Todas as coisas são «desconhecidos» simbólicos do Desconhecido. Consequentemente horror, mistério, medo supra-inteligente. 
Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo enquadramento da minha juventude, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isso eu sou das espécies internas de caráter, auto-centrado, mudo, não auto-suficiente mas auto-perdido. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror de, na incapacidade que permeia tudo o que me é, fisicamente e mentalmente, por actos decisivos, por pensamentos definidos. Eu nunca tive uma resolução nascida de uma auto-determinação, nunca uma traição externa de uma vontade consciente. Nenhum dos meus escritos foi terminado; novos pensamentos sempre se intrometeram, provocando associações de ideias tendo o infinito por termo. Eu não posso evitar o ódio do meu pensamento ao término; sobre uma única coisa tenho dez mil pensamentos, e dez mil inter-associações destes dez mil pensamentos surgem, e não tenho vontade de os eliminar ou prendê-los, nem para reuni-los num pensamento central, onde os seus detalhes sem importância, mas associados, podem ser perdidos. Eles passam em mim; eles não são os meus pensamentos, mas os pensamentos que passam por mim. Eu não pondero, eu sonho, eu não me inspiro, eu deliro. Eu posso pintar, mas nunca pintei; eu posso compor música, mas eu nunca compus. Concepções estranhas em três artes, belos traços de imaginação acariciam o meu cérebro, mas eu deixo que eles durmam lá até morrerem, porque não tenho poder para lhes dar corpo, para torná-los coisas do mundo exterior. 
O carácter da minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definitivos. A idéia de uma solução a ser encontrada para os problemas, os mais elevados, os mais nobres, da ciência, da filosofia, aflige-me; que alguma coisa possa ser determinada de Deus ou do mundo horroriza-me. Que as coisas da maioria dos momentos devem ser feitas, que o um dia todos os homens sejam felizes, que uma solução possa ser encontrada para os males da sociedade, mesmo em termos de conceito, enlouquecem-me. No entanto, eu não sou mau nem cruel; eu sou louco, e, como tal, difícil de conseguir conceber alguma coisa. 
Embora eu tenha sido um leitor voraz e ardente, não me lembro de nenhum livro que li, até agora a minha leitura foram estados da minha própria mente, os sonhos de mim próprio, ou melhor, provocações de sonhos. A minha própria memória dos acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Tremo só de pensar o quão pouco eu tenho na minha mente acerca do que a minha vida passada tem sido. Eu, o homem que diz que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje. 

Fernando Pessoa, 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação

Conhecer-se é Errar

O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra. 

Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse «Conhece-te» propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão. 
Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar. 

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego