quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A Perturbação do Último Acontecimento



A vida de uma pessoa consiste num conjunto de acontecimentos no qual o último poderia mesmo mudar o sentido de todo o conjunto, não porque conte mais do que os precedentes mas porque, uma vez incluídos na vida, os acontecimentos dispõem-se segundo uma ordem que não é cronológica mas que corresponde a uma arquitectura interna. Uma pessoa, por exemplo, lê na idade madura um livro importante para ela, que a faz dizer: "Como poderia viver sem o ter lido!" e ainda: "Que pena não o ter lido quando era jovem!". Pois bem, estas afirmações não fazem muito sentido, sobretudo a segunda, porque a partir do momento em que ela leu aquele livro, a sua vida torna-se a vida de uma pessoa que leu aquele livro, e pouco importa que o tenha lido cedo ou tarde, porque até a vida que precede a leitura assume agora uma forma marcada por aquela leitura.

Italo Calvino, in "Palomar"
O Tempo Vivido Para mim, filosoficamente (se posso ter a pretensão de usar tal palavra), o presente não existe. Só o tempo passado é que é tempo «reconhecível» — o tempo que «vem», porque «vai», não se detém, não fica presente. Portanto, para o escritor que eu sou, não se trata de «recuperar» o passado, e muito menos de querer fazer dele lição do presente. O tempo vivido (e apenas ele, do ponto de vista humano, é tempo «de facto») apresenta-se unificado ao nosso entendimento, simultaneamente completo e em crescimento contínuo. Desse tempo que assim se vai acumulando é que somos o produto infalível, não de um inapreensível presente.

José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1995)'

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

tudo já foi dito, escrito...
mas, como ninguém lê, no intuito de perceber ou ouve,
quando realmente é para escutar...
o ciclo sempre é refeito.
"Acredito que os filósofos voam como as águias e não como pássaros pretos.
É bem verdade que as águias, por serem raras, oferecem pouca chance de serem vistas e muito menos de serem ouvidas,
e os pássaros pretos, que voam em bando, param em todos os cantos enchendo o céu de gritos e rumores, tirando o sossego do mundo."

Galileu Galilei

educar

“Educar é mostrar a vida a quem ainda não a viu. O educador diz: “Veja!” - e, ao falar, aponta. O aluno olha na direção apontada e vê o que nunca viu. Seu mundo se expande. Ele fica mais rico interiormente...” “E, ficando mais rico interiormente, ele pode sentir mais alegria e dar mais alegria - que é a razão pela qual vivemos.” Rubem Alves

quarta-feira, 31 de julho de 2013

SER REAL QUER DIZER NÃO ESTAR DENTRO DE MIM...

Seja o que for que esteja no centro do Mundo, Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade, E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento, Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior, Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim. Ser real quer dizer não estar dentro de mim. Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. Estou mais certo da existência da minha casa branca Do que da existência interior do dono da casa branca. Creio mais no meu corpo do que na minha alma, Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade. Podendo ser visto por outros, Podendo tocar em outros, Podendo sentar-se e estar de pé, Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora. Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente existe — Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo Se a alma é mais real Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes, Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade" Se é mais certo eu sentir Do que existir a cousa que sinto — Para que sinto E para que surge essa cousa independentemente de mim Sem precisar de mim para existir, E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível? Para que me movo com os outros Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo? Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente. E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas. Cousa por cousa, o Mundo é mais certo. Mas por que me interrogo, senão porque estou doente? Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida, Nos meus dias de perfeita lucidez natural, Sinto sem sentir que sinto, Vejo sem saber que vejo, E nunca o Universo é tão real como então, Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim. Mas) tão sublimemente não-meu. Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"? Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"? Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"? E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia? Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos, E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto. Sim, antes de sermos interior somos exterior. Por isso somos exterior essencialmente. Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo. Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma ilosofia, Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha, E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu? Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" Heterónimo de Fernando Pessoa
MINHA TÁTICA É OLHAR-TE, APRENDER COMO ÉS, QUERER-TE COMO ÉS... MINHA TÁTICA É FALAR-TE, E ESCUTAR-TE, CONSTRUIR COM PALAVRAS, UMA PONTE INDESTRUTÍVEL... ( MÁRIO BENEDETTI NO LIVRO: O AMOR, AS MULHERES E A VIDA ).
A Propósito da Clareza Quando se escreve é não somente para ser compreendido, mas também para não o ser. Um livro não fica diminuído pelo facto de um indivíduo qualquer o achar obscuro: esta obscuridade entrava talvez nas intenções do autor, não queria ser compreendido por qualquer bicho careta. Qualquer espírito um pouco distinto, qualquer gosto um pouco elevado escolhe os seus auditores; ao escolhê-los fecha a porta aos outros. As regras delicadas de um estilo nascem todas daí; são feitas para afastar, para manter a distância, para condenar o «acesso» de uma obra; para impedir alguns de compreender, e para abrir o ouvido aos outros, os tímpanos que nos são parentes. Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"
Pouco importa o julgamento dos outros. Os seres são tão contraditórios que é impossivel atender às suas demandas, satisfazê-los... Tenha em mente simplesmente ser autêntico e verdadeiro... Dalai Lama

sábado, 16 de março de 2013

NÃO PRETENDO ME EXPLICAR OU, FALAR DE MIM ... NÃO HÁ O QUE DIZER E, QUEM NÃO ENTENDEU UM OLHAR, SEQUER ENTENDERÁ UMA LONGA EXPLICAÇÃO...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A Inconstância no Amor e na Amizade

Não pretendo justificar aqui a inconstância em geral, e menos ainda a que vem só da ligeireza; mas não é justo imputar-lhe todas as transformações do amor. Há um encanto e uma vivacidade iniciais no amor que passa insensivelmente, como os frutos; não é culpa de ninguém, é culpa exclusiva do tempo. No início, a figura é agradável, os sentimentos relacionam-se, procuramos a doçura e o prazer, queremos agradar porque nos agradam, e tentamos demonstrar que sabemos atribuir um valor infinito àquilo que amamos; mas, com o passar do tempo, deixamos de sentir o que pensávamos sentir ainda, o fogo desaparece, o prazer da novidade apaga-se, a beleza, que desempenha um papel tão importante no amor, diminui ou deixa de provocar a mesma impressão; a designação de amor permanece, mas já não se trata das mesmas pessoas nem dos mesmos sentimentos; mantêm-se os compromissos por honra, por hábito e por não termos a certeza da nossa própria mudança. Que pessoas teriam começado a amar-se, se se vissem como se vêem passados uns anos? E que pessoas se poderiam separar se voltassem a ver-se como se viram a primeira vez? O orgulho, que é quase sempre senhor dos nossos gostos, e que nunca está saciado, sentir-se-ia infinitamente lisonjeado por um novo prazer; a constância perderia o seu mérito: deixaria de fazer parte de uma ligação tão agradável, os favores actuais teriam o sabor dos primeiros favores e as recordações não fariam a menor diferença; a inconstância seria desconhecida e as pessoas amar-se-iam sempre com o mesmo prazer, porque teriam sempre os mesmos motivos para se amarem. As transformações da amizade têm mais ou menos as mesmas causas que as transformações do amor: as suas regras são muito semelhantes. Se um tem mais alegria e prazer, a outra deve ser mais serena e mais severa porque nada perdoa; mas o tempo, que muda o humor e os interesses, destrói-os quase do mesmo modo. Os homens são demasiado fracos e demasiado mutáveis para suportar muito tempo o peso da amizade. A Antiguidade deu-nos os exemplos; mas no tempo em que vivemos, pode afirmar-se que é ainda menos impossível encontrar um amor verdadeiro do que uma verdadeira amizade. La Rochefoucauld, in 'Reflexões'