segunda-feira, 30 de abril de 2012

Um ser revoltante e falso

Quanta felicidade dá a grata suavidade das coisas! Como a vida é cintilante e de bela aparência! São as grandes falsificações, as grandes interpretações que sempre nos têm elevado acima da satisfação animal, até chegarmos ao humano. Inversamente: que nos trouxe a chiadeira do mecanismo lógico, a ruminação do espírito que se contempla ao espelho, a dissecação dos instintos? Suponde vós que tudo era reduzido a fórmulas e que a vossa crença era confinada à apreciação de graus de verosimilhança, e que vos era insuportável viver com tais premissas... que fazíeis vós? Ser-vos-ia possível viver com tão má consciência? No dia em que o homem sentir como falsidade revoltante a crença na bondade, na justiça e na verdade escondida das coisas, como se ajuizará ele a si mesmo, sendo como é parte fragmentária deste mundo? Como um ser revoltante e falso? Friedrich Nietzsche, in 'A Vontade de Poder'

O lado obscuro de cada um de nós

Passou no seu casamento por aquilo que é quase um facto universal - os indivíduos são diferentes uns dos outros. Basicamente, constituem um para o outro um enigma indecifrável. Nunca existe acordo total. Se cometeu algum erro, esse erro consistiu em ter-se esforçado demasiadamente por compreender totalmente a sua mulher e por não ter contado com o facto de, no fundo, as pessoas não quererem saber que segredos estão adormecidos na sua alma. Quando nos esforçamos demasiado por penetrar noutra pessoa, descobrimos que a impelimos para uma posição defensiva e que ela cria resistências porque, nos nossos esforços para penetrar e compreender, ela sente-se forçada a examinar aquelas coisas em si mesma que não desejava examinar. Toda a gente tem o seu lado obscuro que - desde que tudo corra bem - é preferível não conhecer. Mas isto não é erro seu. É uma verdade humana universal que é indubitavelmente verdadeira, mesmo que haja imensas pessoas que lhe garantam desejar saber tudo delas próprias. É muito provável que a sua mulher tivesse muitos pensamentos e sentimentos que a tornassem desconfortável e que ela desejava ocultar de si mesma. Isto é simplesmente humano. É também por este motivo que tantas pessoas idosas se refugiam na própria solidão, onde não serão incomodadas. E é sempre sobre coisas de que elas não desejariam estar muito cientes. O senhor não é, obviamente, responsável pela existência destes conteúdos psíquicos. Se, apesar disto, ainda for atormentado por sentimentos de culpa, reflicta então sobre os pecados que não cometeu e que gostaria de ter cometido. Isto poderá eventualmente curá-lo dos seus sentimentos de culpa relativamente à sua mulher. Carl Jung, in 'Cartas'

Filosofias de vida

A cada etapa da vida do homem corresponde uma certa Filosofia. A criança apresenta-se como um realista, já que está tão convicta da existência da peras e das maçãs como da sua. O adolescente, perturbado por paixões interiores, tem que dar maior atenção a si mesmo, tem que se experimentar antes de experimentar as coisas, e transforma-se protanto num idealista. O homem adulto, pelo contrário, tem todos os motivos para ser um céptico, já que é sempre útil pôr em dúvida os meios que se escolhem para atingir os objectivos. Dito de outro modo, o adulto tem toda a vantagem em manter a flexibilidade do entendimento, antes da acção e no decurso da acção, para não ter que se arrepender posteriormente dos erros de escolha. Quanto ao ancião, converter-se-á necessariamente ao misticismo, porque olha à sua volta e as mais das coisas lhe parecem depender apenas do acaso: o irracional triunfa, o racional fracassa, a felicidade e a infelicidade andam a par sem se perceber porquê. É assim e assim foi sempre, dirá ele, e esta última etapa da vida encontra a acalmia na contemplação do que existe, do que existiu e do que virá a existir. Johann Wolfgang von Goethe, in "Máximas e Reflexões"

Viver de Olhos Fechados

É propriamente ter os olhos fechados, sem jamais tentar abri-los, viver sem filosofar; e o prazer de ver todas as coisas que a nossa visão descobre não é comparável à satisfação proporcionada pelo conhecimento daquelas que encontramos por meio da filosofia; e, finalmente, esse estudo é mais necessário para regrar os nossos costumes e conduzir-nos por essa vida do que o uso dos nossos olhos para orientar os nossos passos. (...) Se desejamos seriamente ocupar-nos com o estudo da filosofia e com a busca de todas as verdades que somos capazes de conhecer, tratemos, em primeiro lugar, de nos libertar dos nossos preconceitos, e estaremos em condições de rejeitar todas as opiniões que outrora recebemos através da nossa crença até que as tenhamos examinado novamente; em seguida, passaremos em revista as noções que estão em nós, e só aceitaremos como verdadeiras as que se apresentarem clara e distintamente ao nosso entendimento. René Descartes, in 'Princípios da Filosofia'
"Eu não gosto de falar de felicidade, mas sim de harmonia: viver em harmonia com a nossa própria consciência, com o nosso meio envolvente, com a pessoa de quem se gosta, com os amigos. A harmonia é compatível com a indignação e a luta; a felicidade não, a felicidade é egoísta." ( José Saramago ).

Quando Está Frio no Tempo do Frio

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável, Porque para o meu ser adequado à existência das cousas O natural é o agradável só por ser natural. Aceito as dificuldades da vida porque são o destino, Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno — Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita, E encontra uma alegria no fato de aceitar — No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável. Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida? O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço, Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime, Da mesma inevitável exterioridade a mim, Que o calor da terra no alto do Verão E o frio da terra no cimo do Inverno. Aceito por personalidade. Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos, Mas nunca ao erro de querer compreender demais, Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência, Nunca ao defeito de exigir do Mundo Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo. Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

quinta-feira, 5 de abril de 2012

O Irracional no Amor

Se é ridículo beijar uma mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém ao abrigo do cómico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também convencê-los de que hão-de cumprir fielmente o juramento.Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: «não sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais actos consistia a sua maior felicidade, como é que eu poderia impedir-me de ver o ridículo de tal explicação - tal como o exemplo que há pouco dei; se bem que diferente, é certo -, enquanto tal homem não se resolvesse a pôr termo à minha hilaridade, confessando que esses gestos não tinham significação alguma. Num repente, com efeito, a contradição, que é a base do cómico, desaparece; porque não há nada ridículo em que uma coisa destituída de sentido seja reconhecida como tal, mas é grotesco atribuir-lhe um alcance universal. Em relação ao involuntário, a contradição reaparece: não é possível admitir o involuntário num ente racional e livre.

Soren Kierkegaard, in "O Banquete" (Discurso do Mancebo, sem experiência no amor)
O Efeito do Afastamento no Tempo O afastamento no tempo engana o sentido do espírito como o afastamento no espaço provoca o erro dos sentidos. O contemporâneo não vê a necessidade do que vem a ser, mas, quando há séculos entre o vir a ser e o observador, então ele vê a necessidade, como aquele que vê à distância o quadrado como algo redondo.

Soren Kierkegaard, in 'Migalhas Filosóficas'