sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Quando Falo com Sinceridade não sei com que Sinceridade Falo Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

Fernando Pessoa, in 'Para a Explicação da Heteronímia'
Nunca Estamos Contentes Já ouvistes dizer: «Ninho feito, pega morta». Que me dizeis ao contentamento do mundo, onde toda a duração dele está enquanto se alcança? Porque, acabado de passar, acabado de esquecer. E com razão, porque, acabado de alcançar, é passado; e maior saudade deixa do que é o contentamento que deu. Esperai, por me fazer mercê, que lhe quero dar umas palavrinhas de propósito:

Mundo, se te conhecemos,
porque tanto desejamos
teus enganos?
E, se assim te queremos,
muito sem causa nos queixamos
de teus danos.

Tu não enganas ninguém,
pois a quem te desejar
vemos que danas;
se te querem qual te vem,
se se querem enganar,
ninguém enganas.

Vejam-se os bens que tiveram
os que mais em alcançar-te
se esmeraram;
que uns, vivendo, não viveram,
e os outros, só com deixar-te,
descansaram.

E se esta tão clara fé
te aclara teus enganos,
desengana ;
sobejamente mal vê
quem, com tantos desenganos,
se engana.

Mas como tu sempre morres
no engano em que andamos e que vemos,
não cremos o que tu podes,
senão o que desejamos
e queremos.

Nada te pode estimar
quem bem quiser estimar-te
e conhecer-te;
que em te perder ou ganhar,
o mais seguro ganhar-te
é perder-te.

E quem em ti determina
descanso poder achar,
saiba que erra;
que sendo a alma divina,
não a pode descansar
nada da terra.

Nascemos para morrer,
morremos para ter vida,
em ti morrendo.
O mais certo é merecer
nós a vida conhecida,
cá vivendo.

Enfim, mundo, és estalagem
em que pousam nossas vidas
de corrida;
de ti levam de passagem
ser bem ou mal recebidas
na outra vida.

Luís Vaz de Camões, in "Cartas"
"Acreditamos poder contar as nossas vidas de maneira mais ou menos razoável e cabal e, quando começamos, damo-nos conta de que estão povoadas de zonas de sombra." ( Javier Marias ).