quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Erros da Inteligência e do Coração

Os erros e as dúvidas da inteligência desaparecem mais depressa, sem deixar rastro que os erros do coração; desaparecem não tanto em consequência de discussões e polemicas como graças à lógica iniludível dos acontecimentos da vida viva, que às vezes trazem consigo o verdadeiro escape e mostram o caminho adequado. Senão logo, na primeira altura, num prazo relativamente breve, em certas ocasiões sem haver necessidade de se esperar pela geração seguinte...
Com os erros do coração o mesmo não sucede. O erro do coração é de maior monta; significa que o espírito frequentemente, o espírito de toda a nação está doente. Sofre de qualquer contágio e não poucas vezes essa enfermidade, esse contacto, implicam tal grau de cegueira que toda a nação se torna incurável... por mais tentativas que se façam para a salvar.
Pelo contrário, essa cegueira desfigura os factos a seu talante, deforma-os segundo as delirantes visões do espírito doente e até pode suceder que toda a nação, prefira ir para a ruína conscientemente quer dizer, conhecendo já a sua cegueira, a deixar-se curar... pois já não quer que a curem.
Fiodor Dostoievski, in "Diário de um Escritor"
A Falácia da Comparação
Os homens não se conhecem uns aos outros com facilidade, ainda que ponham nisso o melhor da sua vontade e das suas intenções. Porque há que contar sempre com a má vontade que tudo distorce.
Conhecer-nos-íamos melhor uns aos outros se não estivéssemos sempre a querer comparar-nos uns com os outros. Decorre daí que as pessoas fora do vulgar ficam em pior situação, porque, como as outras não chegam a poder comparar-se com elas, tornam-se alvo de demasiada atenção.

Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões'
Da Imparcialidade

O homem - eternamente escravo de suas paixões pessoais -
Ë absolutamente incapaz de imparcialidade.
Só Deus é imparcial.
Só Ele é que pode, por exemplo,
Abençoar, ao mesmo tempo,
As bandeiras de dois exércitos inimigos que vão entrar em luta...
[Mario Quintana; Velório sem defunto, 1990]
Confissão

Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!
[Mario Quintana; Velório sem defunto, 1990]
Este e o outro lado
Tenho uma grande curiosidade do Outro Lado.
(Que haverá do Outro Lado, meu Deus?)
Mas também não tenho muita pressa...
Porque neste nosso mundo há belas panteras, nuvens, mulheres belas,
Árvores de um verde assustadoramente ecológico!
E lá - onde tudo recomeça -
Talvez não chova nunca,
Para a gente poder ficar em casa
Com saudades daqui...


[Mario Quintana; Velório sem defunto, 1990]
A VIDA DE DOM QUIXOTE, DO QUE SE TRATA ???
A NOSSA CRENÇA NA VIRTUDE, VALE MAIS DO QUE A PR´PRIA VIRTUDE?
SIM, ISTO ESTÁ CONTIDO LÁ. MAS SOBRE O QUE É O LIVRO?
PODERIA SER SOBRE COMO O PENSAMENTO RACIONAL DESTRÓI NOSSA ALMA?
SERIA SOBRE O TRIUNFO DA IRRACIONALIDADE E O PODER QUE HÁ NISSO ???
PASSAMOS UM TEMPO ENORME TENTANDO ORGANIZAR O MUNDO. CONSTRUIMOS RELÓGIOS, CALENDÁRIOS E TENTAMOS PREVER O TEMPO. MAS, QUE PARTE DE NOSSA VIDA ESTA REALMENTE SOBRE NOSSO CONTROLE ???
E, SE DECIDIR VIVER PURAMENTE EM UMA REALIDADE QUE INVENTAMOS...
ISSO NOS TORNA LOUCOS?
SE ASSIM FOR, SERÁ AINDA MELHOR QUE UMA VIDA DE DESESPERO.
( PERSONAGEM DE RUSSEL CROWE IN 72 HORAS ).

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A Distorção do Entendimento

Que difícil é propor um problema ao entendimento alheio, sem corromper esse entendimento pela maneira de propor! Se dizemos: acho isto belo, acho obscuro, ou outra coisa semelhante, arrastamos a imaginação para este juízo, ou irritamo-la, levando-a ao juízo contrário. Mais vale nada dizer, e então o outro julga segundo o que é, ou segundo o que é naquele momento, e de acordo com o que as outras circunstâncias, de que não somos responsáveis, lá tiverem posto. Mas pelo menos nós não pusemos nada; a não ser que o nosso silêncio tenha também o seu efeito, segundo o sentido e a interpretação que ele estiver disposto a atribuir-lhe, ou segundo o que depreende dos movimentos e da expressão do rosto, ou do tom de voz, conforme for melhor ou pior fisionomista: tão difícil é não deslocar um entendimento da sua base natural, ou antes, tão pouco um entendimento tem de firme e estável!

Blaise Pascal, in "Pensamentos
Contrastes Trágicos Quem não quer ver o que há de elevado num homem olha com maior agudeza para aquilo que nele é baixo e superficial – e assim se revela a si mesmo.

É bastante mau! Sempre a velha história! Quando se acaba de construir a casa nota-se que ao construí-la, sem dar por isso, se aprendeu algo que simplesmente se devia ter sabido absolutamente antes de – começar a construir. O eterno e maçador «tarde de mais!» - A melancolia de todo o terminado!...

Os homens de profunda tristeza denunciam-se quando são felizes: têm um modo de pegar na felicidade como se quisessem esmagá-la e sufocá-la, por ciúme – ah, sabem bem de mais que lhes foge!

Friedrich Nietzsche, in "Para Além de Bem e Mal"

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Aprender a Ver Aprender a ver - habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados. Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não reagir imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem obstáculos, que isolam. Aprender a ver, tal como eu o entendo, é já quase o que o modo afilosófico de falar denomina vontade forte: o essencial nisto é, precisamente, o poder não «querer», o poder diferir a decisão. Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade descansa na incapacidade de opor resistência a um estímulo — tem que se reagir, seguem-se todos os impulsos. Em muitos casos esse ter que é já doença, decadência, sintoma de esgotamento, — quase tudo o que a rudeza afilosófica designa com o nome de «vício» é apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir. — Uma aplicação prática do ter-aprendido-a-ver: enquanto discente em geral, chegar-se-á a ser lento, desconfiado, teimoso. Ao estranho, ao novo de qualquer espécie deixar-se-o-á aproximar-se com uma tranquilidade hostil, — afasta-se dele a mão. O ter abertas todas as portas, o servil abrir a boca perante todo o facto pequeno, o estar sempre disposto a meter-se, a lançar-se de um salto para dentro de outros homens e outras coisas, em suma, a famosa «objectividade» moderna é mau gosto, é algo não-aristocrático par excellence.

Friedrich Nietzsche, in "Crepúsculo dos Ídolos"
A Melhor Maneira de Viajar é Sentir

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chao
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

A chuva com pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

Álvaro de Campos, in "Poemas"
"Eu não gosto de falar de felicidade, mas sim de harmonia: viver em harmonia com a nossa própria consciência, com o nosso meio envolvente, com a pessoa de quem se gosta, com os amigos. A harmonia é compatível com a indignação e a luta; a felicidade não, a felicidade é egoísta."
( José Saramago ).

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Quando Falo com Sinceridade não sei com que Sinceridade Falo Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

Fernando Pessoa, in 'Para a Explicação da Heteronímia'
Nunca Estamos Contentes Já ouvistes dizer: «Ninho feito, pega morta». Que me dizeis ao contentamento do mundo, onde toda a duração dele está enquanto se alcança? Porque, acabado de passar, acabado de esquecer. E com razão, porque, acabado de alcançar, é passado; e maior saudade deixa do que é o contentamento que deu. Esperai, por me fazer mercê, que lhe quero dar umas palavrinhas de propósito:

Mundo, se te conhecemos,
porque tanto desejamos
teus enganos?
E, se assim te queremos,
muito sem causa nos queixamos
de teus danos.

Tu não enganas ninguém,
pois a quem te desejar
vemos que danas;
se te querem qual te vem,
se se querem enganar,
ninguém enganas.

Vejam-se os bens que tiveram
os que mais em alcançar-te
se esmeraram;
que uns, vivendo, não viveram,
e os outros, só com deixar-te,
descansaram.

E se esta tão clara fé
te aclara teus enganos,
desengana ;
sobejamente mal vê
quem, com tantos desenganos,
se engana.

Mas como tu sempre morres
no engano em que andamos e que vemos,
não cremos o que tu podes,
senão o que desejamos
e queremos.

Nada te pode estimar
quem bem quiser estimar-te
e conhecer-te;
que em te perder ou ganhar,
o mais seguro ganhar-te
é perder-te.

E quem em ti determina
descanso poder achar,
saiba que erra;
que sendo a alma divina,
não a pode descansar
nada da terra.

Nascemos para morrer,
morremos para ter vida,
em ti morrendo.
O mais certo é merecer
nós a vida conhecida,
cá vivendo.

Enfim, mundo, és estalagem
em que pousam nossas vidas
de corrida;
de ti levam de passagem
ser bem ou mal recebidas
na outra vida.

Luís Vaz de Camões, in "Cartas"
"Acreditamos poder contar as nossas vidas de maneira mais ou menos razoável e cabal e, quando começamos, damo-nos conta de que estão povoadas de zonas de sombra." ( Javier Marias ).

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

acima e, além de tudo
eu, quero um Deus, que entenda
minha necessidade de solidão...

sábado, 30 de julho de 2011

Não sou um homem real, não sou um homem como os outros, um homem de carne e osso. um homem gerado por homens. não nasci como os meus companheiros; ninguém me embalou ou viu crescer; não conheci a inquietação da adolescência nem a doçura dos laços de sangue. Sou - e quero dizê-lo, ainda que você não acredite tão somente o protagonista de um sonho. Uma imagem de William Shakespeare, tornou-se para mim literal e tragicamente exacta : sou da mesma matéria que são de que são feitas os sonhos humanos ! existo porque alguém me sonha: alguém dormindo, sonha e me vê em actividade, com vida e em movimento, e nesse instante sonha que estou dizendo tudo isso. No momento em que esse alguém começou a sonhar-me, comecei a existir; quando despertar, deixarei de existir. Sou fruto de sua imaginação, uma imaginação sua, um hóspede de suas longas fantasias nocturnas. O sonho desse alguém é tão duradouro e intenso que me tornei visível até para os homens desperto... mas o mundo da vigília, o mundo da realidade concreta, esse não é o meu mundo. sinto -me tão deslocado em meio à vulgar solidariedade de vocês! minha verdadeira é a que transcorre vagamente na alma do meu adormecido criador. " Não creia que estou falando por enigmas ou símbolos. O que estou estou lhe dizendo é a verdade , a pura verdade mais simples e terrível. Pare, então de arregalar os olhos de espanto! não olhe mais p-ara mim com esse ar penalizado de surpresa! '' Ser actor de um sonho, não é o que mais me atormenta. Poetas há que disseram que a vida dos homens é a sombra de um sonho, e filósofos que sugeriram que toda a realidade é alucinação. Eu , em vez disso, sou perseguido por uma outra ideia: quem é que me sonha? quem é esse alguém, esse ser ignoto que não conheço e por que sou possuído, que me faz surgir de repente da névoa de seu cérebro fatigado e que ao acordar me extinguirá de repente, como um sopro inesperado em uma chama.Há quanto tempo penso nesse meu adormecido proprietário, nesse meu criador que se ocupa do curso de minha efêmera vida! Decerto é grande e poderoso: um ser pára o qual nossos anos são minutos, e que pode viver toda a vida de um homem em uma única de suas horas e a história da humanidade em uma de suas noites. seus sonhos devem ser vivos, fortes e profundos a ponto de projectar as imagens para o exterior, de modo que pareçam coisas reais. Talvez o mundo inteiro não seja mais que o produto eternamente variável de um entrecuzar-se de sonhos de seres semelhantes a ele. Mas não quero generalizar demais: deixemos as metafisicas para os imprudentes! basta-me a terrivel certeza de ser a criatura imaginável de um imenso sonhador.
( PAPINI).

quinta-feira, 31 de março de 2011

Pode-se saber como são as pessoas e como evoluirão no futuro? Até que ponto podemos confiar em nossos amigos, conhecidos e sócios, em nossos amores, em nossos pais e em nossos filhos? Quais são as tentações e fraquezas, ou seu grau de lealdade e sua fortaleza? Como saber se fingem ou se são sinceros, se interessados ou desinteressados na manifestação de seu afeto, se seu entusiasmo é verdadeiro ou só adulação, calculada lisonja para ganhar nosso apreço e nossa confiança ou para se tornar imprescindíveis e assim nos persuadir de qualquer projeto e influir em nossas decisões? Tem mais: podemos prever que amigos vão nos dar as costas um dia e se transformar em nossos inimigos? Quero dizer: imaginar a possibilidade quando ainda são os melhores amigos e por eles poríamos a mão no fogo e deixaríamos cortar nosso pescoço? Podemos confiar em nós mesmos, em que não seremos nós que mudaremos e entortaremos e trairemos, que invejaremos um dia hoje quem mais queremos e não poderemos suportar seu contato nem sua presença, e decidiremos nos reger só pelo ressentimento?
( Javier Maria IN Teu rosto amanhã ).

quinta-feira, 24 de março de 2011

sindrome de procusto ???

“Nas sociedades do nosso mundo ocidental altamente industrializado, o posto de trabalho constitui o último campo de batalha em que uma pessoa pode matar a outra sem nenhum risco de chegar às barras de um tribunal”
Heinz Leymann
"Sinto-me um pouco travado. Talvez devesse imitar Baudelaire (ou seria Rumbaud ou Musset?) que escrevia bebendo absinto, com uma prostitua nua no quarto para aquecer a inspiração. Todos esses personagens - digo, meus antepasados -, eles bebem sem parar. É natural que me sinta contagiado pela bebedeira deles.

Ocorre-me, por um momento, que, ao focar tanto no hábito deles de se alcoolizar durante a narrativa, eu tenha emprestado a eles um desejo meu. Pois, ao contar uma história, se faz um recorte do que mostrar ou esconder. E nenhum recorte é imparcial. Preciso continuar escrevendo e rentar ser mais consciente de cada palavra. Não há inocência na escrita, e Deus bem sabe que eu estou afogado em hábitos nada virtuosos".

Antônio Xerxenesky. Areia nos dentes.
No fundo, como bem dizia aquele seu amigo que foi agarrado pelo louco da navalha, no fundo nada de extrordinário pode acontecer conosco, nada que valha a pena contar. Quero dizer que, na realidade, é fato que nunca acontece nada conosco. Todos os acontecimentos que podemos contar sobre nós mesmos não passam de manias. Porque em suma o que podemos chegar a ter na vida senão duas ou três experiências? Duas ou três experiências, não mais que isso (às vezes, inclusive, nem isso). Já não há experiências (no século XIX havia?), só ilusões. Todos nós inventamos variadas histórias para nós mesmos (que no fundo são sempre a mesma) para imaginar que aconteceu alguma coisa conosco na vida. Uma história ou uma série de histórias inventadas, que no fim são a única coisa que na realidade vivemos. Histórias que contamos para nós mesmos com o objetivo de fazer de conta que temos experiências ou que aconteceu alguma coisa que tenha sentido em nossa vida. Mas quem pode garantir que a ordem do relato é a ordem da vida? Dessas ilusões somos feitos, querido mesmo, como o senhor sabe melhor do que eu".

Ricardo Piglia. Respiração artificial.
Ninguém me segura, meu bem. Acordei com a disposição de um atleta paraolímpico. Corri descalço e sem roupa por todo o apartamento, as janelas da sala escancaradas. Um paraíso envidraçado, nosso oásis ergonômico, lembra? Decoramos tudo sozinhos. Com rigor, sem excessos, de acordo com a tua vontade. Perdi, sim, a batalha da cozinha. Os tijolos de vidro, admito, foram uma ótima escolha. A parede invisível, aquela luz de geleira. Você está de parabéns. Ficou mesmo lindo.

Também adoro nossa cafeteira italiana. Tão charmosa. A cara da dona, eu diria, se fosse um ignorante. Você acertou na compra: ela sempre nos foi muito útil. E vai durar mais dez, doze anos, aproveite. Eu aproveitei. Tanto que, hoje cedo, ao ligar a maquininha, já me senti um pouco nostálgico, saudoso de tudo.

Difícil me ver assim, sentimental. Ainda mais com a fome que sempre sinto quando acordo. Fome negra. Até matei aquele salame polonês que você trouxe da feira das nações. Comi tudo, ao som da água fervendo, do café pingando na jarra suada. Adoro o vapor. Adoro o chiado dos eletrodomésticos. Adoro embutidos. São coisas boas que a vida nos oferece. A vida em si é boa, ninguém precisa me convencer disso. Meu problema é outro. É nosso. Nada relacionado com comida, meu doce.

Mas comi bem, como sempre comi. Mastiguei de boca aberta, sim, daquele jeito que você sempre critica. Eu estava distraído. Me olhando na porta espelhada da geladeira. Meu reflexo seminu parecia o de um macaco espantoso, esguio. E aquilo me chateou um pouco. O Narciso sinuoso ali, brilhando. Eu, metálico e barbudo, descabelado, mas ainda apresentável. Me desperdicei, não nego. Nos desperdicei, você vai enfatizar. É o que vai dizer aos outros no futuro ― amanhã mesmo, aposto.

Engraçado. Até parece que faz dias que não nos falamos.

Meu banheiro ainda deve estar úmido, vá checar. O maldito patchuli dominando tudo, minhas unhas no assoalho. Experimente o piso, a toalha esticada: tudo molhado. Sei, sei que é estranho.

Ah, meu toalete privativo, meu éden azulejado, adeus.

Há quanto tempo você não entra no meu banheiro? Nem sabe das novidades. Mandei reformar, você nem notou. Troquei a fórmica do balcão. Botei um tampo de madeira clarinha, cem vezes mais elegante, impermeabilizado por camadas bem finas de verniz náutico. A pia ficou deslumbrante. Mas de que adiantou? Você nem viu. Dê uma olhada no meu banheiro, mais tarde. Dê, se tiver coragem. É onde meu fantasma vai baixar, todas as noites.

Também mijei sentado, hoje cedo. Como sempre. Sinal de indolência, você diria. Descaso com minha própria masculinidade. A infância que não me larga, o menino frágil, enojado das coisas da vida. Pode ser. Não ligo para o que você acha. Os teus diagnósticos não me interessam mais.

Não me importo com quase nada. Nunca me importei. Hoje, por exemplo, decidi que nem faria a barba. Não sei por que, apenas não fiz. Só não resisti às carícias do meu banho quentinho de quarenta minutos. Frescura minha, não? Mas não te incomodei, você deve ter reparado. Hoje não: tomei o cuidado de não cantar no box, minha melhor mania. Abri mão do meu toque de alvorada, da minha canção de todas as manhãs. Você nunca se interessou por ela, não? Me magoou, viu? Nunca perguntou o que era. Pois hoje eu te conto: era uma modinha do Carlos Gomes. Uma modinha que, em respeito ao teu sono, deixei de cantar, hoje cedo.

Já eram oito e meia quando entrei no nosso quarto, bem quieto. Você nem percebeu. Fui dar uma última olhada na bela adormecida, nas últimas curvas agradáveis do teu corpo. Mas você estava coberta, o efeito não foi o mesmo. Mais uma decepção para a nossa lista.

Resgatei algumas coisas no closet, saí com as roupas emboladas no colo. E você dormindo, minha jibóia, numa boa. Nem se mexeu, soterrada pelo edredom de penas de ganso. Achei um exagero, não estava tão frio assim. Deve ter acordado depois do meio-dia, acertei?

Mas vou pegar leve, meu bem. Não quero reclamar demais. Apenas na medida do necessário. Antes de te conhecer, tudo ia muito mal para mim. Só que eu achava que iria melhorar. Sério. Acreditava nisso. E talvez até tenha melhorado um pouco. Mas a que preço?

Você é uma chata, Marion.

Um cadáver semi-animado. Nunca estava aqui e nunca me deixava sozinho. Nunca esteve e nunca me deixou. Não está e não me deixa.

Chata. Com que isca eu podia te apanhar?

Sim, eu sei que há coisas de que você gosta, que te dão prazer.

Sei que você gosta de saldar as dívidas que eu faço. Nunca vi mal nisso, claro. Também sei que você sempre gostou de me vestir conforme o teu bom gosto. Você adora roupas, não é nenhuma extravagância da tua parte. Mas sempre alimentou o mais absoluto desdém pelo meu corpo ou pelo corpo de qualquer outra criatura despida.

Só peço que me perdoe. Posso estar sendo injusto com você, eu sei. Você sempre foi decente em relação à tua frigidez. Desde a universidade. Desde quando a gente ainda namorava. Foi a princípio austera e posteriormente passiva. Me desculpe, mas tenho que registrar isso, sem piedade.

Foi duro, você sabe. No começo, eu tinha dificuldades até para descruzar os teus bracinhos no sofá. Eu fui um guerreiro, meu bem. Eu poderia ter recuado. Mas demonstrei coragem. Perseverei. E você? Nem bebida nem maconha te relaxavam. Você era assustadora, Marion. Assustadora. E eu te enfrentei. Ah, você resistia como uma amazona de pedra.

E me pedia paciência, lembra? Eu tive, não tive? Ou melhor, fingi que tinha. Tive mesmo foi dó. Lembra de todas as vezes em que você me pediu perdão por ser desanimada? Eu te desculpava sempre, compreensivo demais. Hoje, ambos pagamos pela minha tolerância. Você, em dinheiro.

De certa forma, o culpado fui eu. Acreditei no sonho de uma união pacífica e terapêutica, de um casamento estético. Mas, no fundo, de que adianta ser um casal bonito? Porque é isso que nós fomos, não?

Sim, só isso, só um casal bonito.

Você nunca me provocou ciúme algum, essa é a verdade. Você nunca olhou para outro homem. Nem percebia quando a olhavam. Simplesmente estava sempre pensando em outra coisa. Talvez nas fazendas do teu pai, que tanto nos encantavam. Lembra da vista do helicóptero? O pasto salpicado de vacas brancas em fuga, as flores graúdas, os cupinzeiros duros, tumores na terra vermelha.

Quer saber qual é o problema, Marion? Ser amado por uma menina linda, rica, casta e complacente deveria ser ótimo. Mas não é. Não foi. Na real, castidade e complacência são sintomas atemporais de maluquice. A Idade Média estava cheia de santas da tua laia.

Você me aborrece, não vou mentir. Já menti demais.

Eu passei esses últimos três meses trancado em casa. Pintando, não é mesmo? Não. Não pintei nada. Não estava trabalhando na minha nova exposição. Surpresa? Pode averiguar, pode vasculhar meu ateliê, a chave está na mesa da cozinha. Veja lá, corra: você não vai encontrar uma tela que preste. Nada. Passei três meses dormindo, à tarde. Ressonando lá dentro. Só saía para buscar cervejas no freezer. Você nunca estava em casa para me ver vadiando. Uma pena. Nunca me viu invadir a área de serviço de cueca, polvilhado de tinta, a cavalo numa vassoura. Eu apavorava a psicótica da Cristiana. Ela protestava, aos berros. E depois ria, ria. Uma louca, pior que você. Eu agarrava ela por trás, arrancava a sua touca com os dentes. Eu lambuzava aqueles babados, atirava seus chinelos pela sacada. Manchava de roxo, verde e laranja o preto-e-branco do uniforme dela. De propósito. Você nunca notou? Os dedos coloridos no avental da moça? Se fez de cega, a vida toda.

Quer saber? Se deixassem, eu desfilaria de cueca suja por todo o condomínio. Sempre gostei do calor, sempre relacionei a sua chegada anual ao revigoramento do meu bem-estar mental e físico. Sempre gostei de andar imundo, pelado. Mas você me traumatizou, Marion. Falou mal das minhas pernas finas. Zombou do meu peito fundo. Você, que sempre abominou os dias quentes, parida dos bafos pantanosos do sertão, sob o signo da cobra. Esnobe da selva, você. Filha do brejo, cria ruiva de uma capivara.

A eterna recusa a usar saias e sandálias. Infeliz, nunca mostrou os pés e as canelas em público. Grudenta demais para se perfumar? Muito suada para trepar comigo? E quem é que agüenta uma mulher que toma três, quatro banhos diários? Pelo menos, você me diria, a tua higiene nunca foi medieval. Conheço o teu humor. Mas de que adianta tanta água, tanto sabonete, meu bem? Termina de se enxugar e já está suada de novo. Ah, a ineficiência das toalhas baratas, a arbitrariedade das translações da Terra. As estações do ano, os ventos que vêm do mar, as frentes que vêm do sul, os veranicos de maio, as inversões térmicas, as chuvas de granizo, os redemoinhos de pó. Que inverno glacial vai deter as tuas glândulas? Por que você não se arremessa no espaço, por que não vai morrer em Netuno? Por que não se deita numa tumba de criogênio?

Pior foi anteontem de madrugada, Marion.

Você acordou gritando. Ensopada, minha sucuri. Eram quatro horas. No banheiro da suíte, você chorou alto debaixo da ducha. Foi um saco. Voltou em quinze minutos, nervosa, cheirando a lanolina. Vestia uma camisola nova ― eu sei, sempre reparo em você. Se sentou na cama, querendo conforto ou conversa. Fez tudo isso e nem sabe que fez.

Me disse que havia sido vítima de uma alucinação pirética. Tinha algo a ver com os teus poros. Cada um deles, um poço transbordante de óleo fervendo. Um ácaro, eu marchava pelo deserto da tua pele, entre crateras descobertas. Um planeta imenso, vulcânico, você. Eu saltitava e atirava pequenas moedas de ouro naquelas tuas fendas e falhas abertas, nas fogueiras acesas pelo descampado do teu corpo; eu dançava ali, saltava e emitia um tipo semi-articulado de balido cuja tradução se perdera durante o banho. O sonho, então, se tornava nebuloso, mas uma mudança inesperada de cenário devolvia a ele uma seqüência lógica.

De repente, você se via, a si própria, limpa e seca, estirada sobre um estrado. Você, Marion, dura, uma tábua recém-saída da serraria. A Cristiana te abanava com a asa de um avestruz; varejeiras te vigiavam, empoleiradas na corrente do lustre. Você dormia nua sobre um colchão sem lençóis, as mãos sem jóias cruzadas sobre os seios pequenos, o púbis sem pêlos à mostra. Sem aviso, eu aparecia de novo, furtivo, no quarto iluminado. Uma luz leitosa nos lavava, chapava as paredes de gelo da nossa casa.

As moedinhas no meu bolso, tilintando.

Ao pé da cama, duas patas peludas pousaram no meu tórax. Era a Cristiana, cadela atenta, mal domesticada, me barrando a passagem, me intimando.

― O que você prefere, cara: a necrofilia ou o celibato?

Frente àquele dilema, eu balia. Apenas balia, cheio de dor. E tudo se sublimava, em meio a vapores suspeitos.

Você tentou decifrar o sonho, sabe? Somente a morte poderia cessar a produção de suor no teu corpo, a morte seria a ausência de umidade, me garantiu. Absurda, absurda. Só quando vi que você vestia não mais a camisola, mas o uniforme da empregada, fosforescente de tintas, percebi que era eu quem estava sonhando.

Sorri e segurei os teus pulsos.

― Você é louca ― eu te disse.

E aquilo foi uma libertação, meu doce.

― Deve ter ocorrido algum caso grave de sífilis na tua família.

A sífilis era muito comum entre os pecuaristas de antigamente, sabia? O próprio Sífilo era um pastor, assim como o teu pai e o teu deus são pastores.

Novos gases surgiam e, sem mais, encerravam meu sonho.

Eu nunca havia me sentido tão livre, Marion. Todas aquelas discussões a respeito da interpretação dos sonhos, sabe? Quanta inocência, quanta arrogância a nossa.

O sonho, meu bem, é o terreno baldio das nossas vontades. É o lixão das liberdades pessoais. É o berço dos vira-latas, o motel dos urubus.

Eu não te amo. Nunca amei. Apenas fui com a tua cara.

Depois deste café gostoso, me mato. Tchau.


***

Você venceu, cara. O que me faltava era diversão. Você passou anos me cobrando aventuras, lembra? Me pedindo constância e coragem. Bom, de certa forma, você estava certo, eu sei. Mas não totalmente. Porque você subestimou as minhas carências. Eu, pobre de alegrias? É isso mesmo que você pensa? Que a felicidade é a nossa maior riqueza? Pois eu te acho um humilde, meu camarada. Nada mais que um humilde. Coitado daquele que carece só de divertimento, Décio. Esse, sim, é um louco: quer fazer do nosso vale de lágrimas o seu parque aquático.

Pois classificar os meus problemas demanda alguma especialização. Não pense que é para o teu bico. É fácil dar palpites, planejar o futuro ― principalmente o futuro dos outros. Mas eu te entendo. Você sempre esteve aqui, do meu lado, ouvindo as minhas arengas. Não esteve? Acabou se achando no direito de se meter comigo. Agora agüente.

Veja bem, eu não estou reclamando. Nunca me queixei de você. Não de barriga cheia. E eu até que fui longe. Consegui montar a minha exposição, por exemplo. Graças a você e a Marion, é o que todo mundo acha, é o que vivem me dizendo. E é verdade, não posso negar. Vocês sempre foram bons conselheiros, bons motivadores. Você, o meu braço direito, a minha musculatura. Ela, a minha tesoureira, o meu iglu.

Mas quanto sangue frio, cara, quantos cálculos e cuidados. Quanta experiência e quanto desperdício. Você sempre soube o que fazer, como agir, a quem recorrer. Sempre antecipou tudo. Ao teu lado, nunca fui pego desprevenido. Mas de onde viria esse teu poder divinatório, meu xamã? Você é mesmo um mistério, Décio, um animal iluminado.

Como você previu, minha vernissage foi um sucesso. Minha insegurança só nos fez perder tempo. Foram quantas as minhas noites de choro e de conversa mole? Você contou? Eu sim: seis meses de cantilenas, de chatices gratuitas. No fim das contas, era tudo bobagem minha. Todo mundo apareceu. Todos beberam do meu vinho, comeram meus canapés. Todos elogiaram o meu trabalho. Todos me abraçaram e beijaram.

Menos você.

Não que eu tenha ficado surpreso com a tua ausência. Apenas levemente contrariado. Para mim, aquilo foi uma derrota histórica. Perdi, eu sei. E nunca gostei de perder. Te perdi e, admito, você ganhou.

Você, que sequer disputou comigo.

Sei que você não gosta das coisas que eu faço, que sempre desaprovou minhas escolhas. Você sempre foi mais honesto, mais íntegro que os outros caras. Desde criança, Décio. Você nunca me engoliu. Nunca engoliu minha pintura suja, minha pincelada frenética. Sempre evitou olhar diretamente para os meus desenhos. Nunca percorreu, a pé, qualquer uma das minhas instalações. Nunca examinou nenhuma das minhas telas por mais de dez segundos. E você estava certo. Com isso, você preservava nossa amizade. Não perdeu tempo com aquela tralha. Eram esboços de nada, estruturas falidas. Carvão e óleo, madeira e ferro a serviço da farsa, da afronta.

Para você, eu sempre fui um idiota querido. O companheiro lamentável. Quantas vezes precisei do teu socorro? Lembra de quando caí da mimoseira gigante, no jardim da tua avó? Você me escorou até o posto de saúde, teu ombro e meu sovaco encaixados, um abraço perfeito. Quando me acidentei na tua bicicleta, você nem se incomodou com os pedais tortos, o guidão destruído, o dinheiro gasto no conserto. Nunca me cobrou. Quando vomitei no nosso primeiro baile de carnaval, você passou a noite comigo, do lado de fora do clube. Lá dentro, todas aquelas gurias te esperavam, debutantes quase nuas, vestindo apenas miçangas, biquínis, serpentinas derretidas. Lembra? Vimos o sol nascer na praia, juntos. Eu não podia caminhar, eu não conseguia endireitar meu corpo, meu abdome rígido, inchado de gases, o fígado intumescido. Pois eu e você deixamos o carnaval passar, a festa morrer, a minha cólica e o mar rugindo entre a gente. Eu te disse que estava enjoado, que precisava de ar puro. E você não acendeu um cigarro. Nosso maço amanheceu lacrado no bolso da tua bermuda.

Atrapalhei teus planos e tuas conquistas, não? Quantas vezes você perdeu no futebol porque eu estava no teu time? Mesmo assim, nunca deixou de me escolher para a tua zaga. Nunca me sentei no banquinho de cimento da cancha de areia, lugar cativo das meninas, dos veadinhos. Quantas vezes foi meu parceiro de baralho, você, a metade furiosa de uma dupla perdedora? Quantas vezes deixou de ganhar na sinuca graças à minha falta de coordenação motora, à minha pouca inclinação para a disputa? Quantas bolas brancas me viu derrubar, resignado?

Você fez de tudo por mim, não? Até parece que me protegeu de algum perigo. Você, meu campo magnético, minha santa redoma, me pôs a salvo de quê? De que feras me isolou? Ah, a vida toda você assobiou a melodia errada. Porque fui eu quem te pôs numa gaiola, quem te pendurou num galho florido de goiabeira. Duvida de mim? Pois diga: quem mais te ouviu cantar, curió? Só eu, Décio, só eu e mais ninguém.

Pense na tua vida sem a minha. Você não consegue. Você não a vê, ela não existe. Porque a tua vida sempre foi a piedade que sentiu de mim. A dor de me ver desamparado.

Quer um presente, cara? Hoje, te libero dessa carga. Hoje, teu fardo fica mais leve. E você? Vai sentir saudade do meu peso? Do sagüi que te mordia a nuca? Da bola de chumbo no teu tornozelo? Minta para mim, pode mentir, língua de caramelo. Não me importo mais. E, francamente, espero que você tenha tirado algum proveito da nossa convivência, da companhia que te fiz. Porque, vou te dizer, meu amigo: você nunca foi grande coisa.

Me desculpe. Mas tenho verdades a registrar.

Gostar de você foi, sim, a minha maior fraqueza. Eu me sacrifiquei por você. Sem mim, sem a minha fragilidade, você nunca teria a quem se comparar e sair vitorioso. Eu fui a tua referência abaixo da média. A pedra de toque que melhor serviu à tua ilusão de poder e fortaleza, que melhor escondeu a tua insuficiência. Amigos servem para isso, Décio. Eu sou teu amigo. Eu fui teu amigo. Para te dar a vitória, me tornei, eu mesmo, o derrotado. Deixei de lutar, meu cavaleiro, para te manter comigo, para me manter contigo, sempre. Errei, quem sabe? Pode ser. Hoje, vejo as coisas de outro ângulo. Sei que você nunca me deixou. Mas, na real? Você nunca esteve aqui.

Estamos quites, portanto. Vivemos assim, pau a pau.

Não peço que me agradeça. Nem mesmo por toda a emoção que te proporcionei. Eu não mereço. Ninguém aqui merece nada.

Quer saber? Acho que tudo que fiz por você, pela Marion e por mim mesmo foi um pouco inútil. Não sou sequer um artista talentoso. Não fui um artista talentoso ― já me corrijo, como se eu estivesse escrevendo da posteridade, do século que vem. Ridículo, não? Daqui a cem anos, ninguém vai saber da minha vida. Da tua, muito menos. Ninguém vai querer saber da gente. Minha arte não vai sobreviver nem ressuscitar. Sempre foi uma ofensa, sempre foi o fingimento. Uma imitação daquilo que eu, um dia, imaginei que existisse de bom na humanidade. Um sonho parodiado. A caricatura de um desejo. O retrato de um poço envenenado.

Ah, as minhas ambições também sempre foram modestas, Décio. Essa é a verdade. Desculpe se isso te decepciona. Quem te mandou ter fé em mim, apostar no meu azarão? Eu te pedi isso, por acaso? Sugeri algo parecido? Nunca te disse antes, mas sempre quis abandonar tudo. Sempre quis ser funcionário de uma loja de cosméticos, sempre quis morrer jovem sobre um balcão de bijuterias furta-cor, vender tapeçaria persa, milagres ortopédicos, colares de ametista e processadores de alimento, comandar leilões na televisão, de colete e gravata-borboleta, apitar jogos de vôlei. Adoro cores e bichos. Adoro transparências e luzes. Adoro o escuro e a lua cheia. Adoro dormir. São coisas boas que a vida nos oferece. Você não precisa me lembrar que elas existem. Eu nunca deixei de desejar a simplicidade.

Também adoro as pessoas, todas elas. Seria muito bom ter convivido com gente de verdade, autêntica, vulgar. Não pude fazer isso, você sabe. Nunca levei jeito para a vida comum, puramente social ou biológica. Não tive filhos nem filhas. Apenas imaginei uma descendência brilhante, sonhei com ela todas as noites da minha vida. Mas imaginar não é conceber. Sonhar é o oposto de agir. Não que eu veja algo de errado nisso. Muito pelo contrário.

Aliás, quero te contar que tive um sonho.

Anteontem, uma mulher linda, muito branca e muito forte, acordou na minha cama. A Marion tinha sumido, sem explicações. E aquela moça havia tomado o lugar dela. Ombros largos, asas mal tatuadas nas costas. Um anjo, claro. A imagem é óbvia. Mas era uma espécie suburbana de anjo. Um querubim desarmado, carnavalesco. Cada pena de suas asas tinha uma cor diferente; e cada asa, cinco mil penas pontudas, algumas em forma de facas, outras em forma de espadas.

Ela se sentou sobre as pernas cruzadas, a coluna reta, os cabelos pretos, curtos, penteados para trás. Mãos e dedos longos, sem anéis, os braços de esqueleto para o alto. Se espreguiçava, estralando os ossos. Arranhou o teto com as suas unhas de diamante. Ferido, o forro se desfez em lascas de tinta fosca, fagulhas prateadas. Eu me sentia muito pequeno naquela cena, vulnerável, pronto para ser pulverizado. Ou acalentado. Eu, um inseto. Ou uma criança de colo.

Decidi acender a luz e desfazer de uma vez a ilusão. Busquei o interruptor e, na minha cabeceira, encontrei somente um velho abajur, que pertencera à minha mãe. Simplesmente surgira ali, uma planta germinada à toa, ao acaso, na madeira nobre do criado-mudo.

Era um abajur grotesco, cafona. Lembra dele? Um anjo nu, de mármore, enrolado em duas guirlandas de rosas brancas? Ele se espichava para o céu, na ponta dos pés, as costas e a bunda bem à mostra, o lombo de felino alongado, as mãozinhas nervosas na tentativa de tocar a lâmpada sobre elas, a cúpula de penduricalhos cintilantes. O anjo era um menino ― uma menina? ― ainda muito jovem. Você lembra, sim. Passava horas acariciando aquele anjo de pedra, um gato irresistível ao teu alcance, teu brinquedo proibido.

Surpreso, não acendi a luz. Apenas toquei, como você tocava, o corpo gelado daquela estatueta. Uma sensação mortificante de frio logo me arrepiou os dedos. Ao meu toque, a cúpula do abajur faiscou e, em dois segundos, incendiou-se completamente.

O fogo me acordou. O calor sempre me acorda.

Quer saber? Pena eu nunca ter sonhado com você, Décio. Isso, sim, teria sido divertido.

Mas encerro, enfim, a tua carta de alforria. O teu melhor presente de aniversário. Parabéns, meu amigo. Me sacrifico no teu dia votivo.

Te amo, pomba innocente. Tchau.

(Luis Henrique Pellanda IN DUAS CARTAS / O MACACO ORNAMENTAL ).

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Já me matei faz muito tempo
Me matei quando o tempo era escasso e o que havia entre o tempo e o espaço era o de sempre
Nunca, mesmo o sempre passo
Morrer faz bem à vista e ao baço
Melhora o ritmo do pulso e clareia a alma
Morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma.
(Paulo Leminsk)

REVERÊNCIA AO DESTINO

Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião. Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá. Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias. Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado. Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir. Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso. E com confiança no que diz. Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação. Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer. Ou ter coragem pra fazer. Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado. Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende. E é assim que perdemos pessoas especiais. Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar. Difícil é mentir para o nosso coração. Fácil é ver o que queremos enxergar. Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto. Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil. Fácil é dizer "oi" ou "como vai?" Difícil é dizer "adeus". Principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas... Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados. Difícil é sentir a energia que é transmitida. Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa. Fácil é querer ser amado. Difícil é amar completamente só. Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar e se entregar. E aprender a dar valor somente a quem te ama. Fácil é ouvir a música que toca. Difícil é ouvir a sua consciência. Acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas. Fácil é ditar regras. Difícil é seguí-las. Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros. Fácil é perguntar o que deseja saber. Difícil é estar preparado para escutar esta resposta. Ou querer entender a resposta. Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade. Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria. Fácil é dar um beijo. Difícil é entregar a alma. Sinceramente, por inteiro. Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida. Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro. Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica. Difícil é ocupar o coração de alguém. Saber que se é realmente amado. Fácil é sonhar todas as noites. Difícil é lutar por um sonho. Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.
(Carlos Drummond de Andrade)
Dói-me quem sou. E em meio da emoção Ergue a fronte de torre um pensamento É como se na imensa solidão De uma alma a sós consigo, o coração Tivesse cérebro e conhecimento. Numa amargura artificial consisto, Fiel a qualquer idéia que não sei, Como um fingido cortesão me visto Dos trajes majestosos em que existo Para a presença artificial do rei. Sim tudo é sonhar quanto sou e quero. Tudo das mãos caídas se deixou. Braços dispersos, desolado espero. Mendigo pelo fim do desespero, Que quis pedir esmola e não ousou. (Fernando Pessoa)

desespero

Temo, reverte. Temo que aconteça Que te vendo de novo em minha frente Procure em ti uma mulher ausente E não te reconheça... Calcula agora a dor que então terei Se, falando contigo e te beijando, Eu ficar, como um louco, procurando, Na qual foi meu amor, a mulher que eu amei! (Menotti Del Picchia).

PARAFRASEANDO WOODY ALLEN

No Brasil, não se joga o lixo na lixeira - o convertem em programas de televisão.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Faça o que for necessário para ser feliz.
Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples,
você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade.
(Mário Quintana)
PARA OS " REALITY SHOWS DA VIDA. "

sábado, 22 de janeiro de 2011

Um judeu ateu é sempre um drama maior do que qualquer ateu, porque se assemelha à agonia de um vulcão
LUIZ FELIPE PONDÉ (FOLHA DE SÃO PAULO – 18 outubro 2010)



UM HOMEM deve reconhecer seus ancestrais. Existem várias formas de ancestralidade. Nossos autores prediletos são nossos patriarcas.

O primeiro texto que me marcou foi a Bíblia. Abraão e sua solidão diante de um Deus que armou sua tenda no deserto me deram um senso estético que nunca perdi. Seus profetas, num combate contínuo contra a estupidez do povo, fizeram de mim um cético com relação às virtudes populares.

Na medicina, Freud foi um encontro definitivo: o homem é um barco à deriva num mar de pulsões autodestrutivas. Vive como pode num mundo onde sua felicidade não parece fazer parte dos planos do Criador. O Deus do ateu Freud é arrasador. Um judeu ateu é sempre um drama maior do que qualquer ateu, porque se assemelha à agonia de um vulcão.

Já na filosofia, o viés trágico se impôs com a descoberta de Nietzsche e sua filosofia do martelo, cujo desprezo mortal pela covardia e pelo ressentimento se tornou em mim uma segunda natureza. Sua política, uma espécie de anarquismo aristocrático, é sempre perigosa para os amantes dos rebanhos.

O ceticismo dos gregos, de Montaigne e de David Hume abalou para sempre minha capacidade de fé na razão, não em Deus, como pensa a vã filosofia.

Nunca acreditei muito no ser humano: considero o otimismo, principalmente hoje em dia, um desvio de caráter. Santo Agostinho e Pascal, cristãos pessimistas, me ensinaram que o cristianismo é uma história do homem combatendo ingloriamente (e cotidianamente) sua natureza afogada no mais sofisticado orgulho e na mais profunda inveja (de Deus). Quando me perguntam qualquer coisa sobre o ser humano, antes de tudo, penso como um medieval: os sete pecados capitais estão quase sempre certos. Somos pó que fecha os olhos diante do vento.

Dostoiévski é sempre essencial. Para mim, uma de suas descobertas capitais é que, ao contrário do que diz nossa miserável ciência da autoestima, apenas quando encaramos o mal (a “sombra” de uma espécie abandonada ao próprio azar) em nós é que recuperamos a vontade de viver. Só esmagando o orgulho com a humildade de quem se sabe insignificante é que vale a pena apostar no dia a dia.

Entre Nietzsche e Dostoiévski, aprendi que o niilismo, “esse incômodo convidado para o jantar”, veio pra ficar e é apenas diante dele que vale a pena exercer a filosofia.

E o judeu Rosenzweig? Definitivo para quem pressente que a metafísica nada mais é do que pensamento mágico a serviço do medo da morte. E que não é a esperança mágica que deve nos guiar, mas a percepção de si mesmo como milagre em meio ao pó que em nós estremece. Rosenzweig pensa como o homem bíblico.

Quando “decidi” que a academia era pequena sem a mídia, os “jornalistas filósofos” passaram a marcar meu horizonte profissional. Otto Maria Carpeaux descreveu a imagem máxima da relação entre espírito e corpo: quando o primeiro se levanta, o segundo se põe de joelhos.

Nelson Rodrigues, que estava certo em tudo que falava, escrevendo uma obra entre Santo Agostinho, Dostoiévski e Freud, iluminou um fato consumado: se o mineiro for solidário apenas no câncer, então tudo é permitido.

E finalmente a praga da “fé política”. Contra essa, Edmund Burke e Tocqueville são bálsamos essenciais. Tocqueville, principal referência para entendermos a democracia, nos alertou para a natural vocação que esta tem para uma nova forma de tirania, a tirania da maioria. Antes de tudo, a democracia fez os “idiotas” (expressão rodriguiana) descobrirem que são maioria.

Burke nos lembrou, contra os que “amam a moda”, que a sociedade é uma comunidade moral de almas, que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. Para Burke, é apenas neste arco de ancestralidade que o homem se faz homem, contra a banalidade do presente que nos assola.

Enfim, quem conhece sua ancestralidade, mesmo quando caminhando no vale das sombras, nunca está só.
O poeta russo Joseph Brodsky, em seu monumental “Discurso Inaugural”, afirma que sobre o bem devemos falar sempre entre poucas pessoas. Sobretudo porque, quando falamos para muitas pessoas, a chance de que muitas delas sejam más é enorme, justamente porque são muitas. Mesmo que jurem sinceridade, ainda assim devemos desconfiar, pois os sentimentos falsos são comuns nas pessoas e, quando multiplicamos seu número, multiplica-se exponencialmente a possibilidade de falsos sentimentos. Mas não vou falar aqui do bem nem do mal. Talvez haja, afinal, alguma relação entre o pequeno objeto deste ensaio e o bem e o mal, do contrário não teria assim pensado. Mas deixemos isso para lá. Corramos o risco. O que nesta analogia conscientemente me importa é o número de pessoas: espero que apenas umas três ou quatro pessoas leiam este ensaio. E por que esse meu desejo de ser lido por poucos? Porque pretendo falar de algo que não se deve falar para multidões. A delicadeza, a sofisticação da alma, o amor ao detalhe e a vontade de entender não são atributos das multidões, e aqui reside grande parte de toda a miséria moderna, ser um mundo de grandes números, dedicado a muitos idiotas.

(Luis Felipe Pondé “No Sinai”, Contra um Mundo Melhor, Ed. LeYa, 2010, p. 214-215)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

ESPECIALISTAS, COMO ME CANSAM.

VOCÊ SEMPRE TEVE VÁRIAS REPOSTAS.
MAS, APENAS ALGUMAS,
MESMO DETURPADAS OU COM UM TANTO DE SEU SENTIR E PERCEBER.
VIERAM DE ENCONTRO AS MINHAS PERGUNTAS.