quinta-feira, 25 de março de 2010

COM ÁGUA PELO PESCOÇO.

“Procuraste a carga mais pesada" – diz Nietzche no- encontra-te a ti mesmo. No grande mosaico em que cada pedra é um dia, uma dor, um sofrimento, uma experiência, pouca coisa parece formar tão bem um desenho coerente quanto a opera magna da descoberta do mundo pela revelação do descobridor. Não se trata de um calembur intelectual ou de um enigma para pessoas cultas, mas da constatação de um sentido para esse conjunto de coisas que jamais deixamos de acreditar que obedecem a uma coerência. A clareza que exigimos para examinar o que a esfinge da vida propõe todo o tempo é mais do que simples objetividade é resposta. A intuição pura de Nietzche percebe que a carga só é pesada porque não nos encontramos momento a momento, preferindo esperar um instante de redenção, após o qual nada será como antes. A descoberta fundamental, no entanto, não é uma culminância, é um processo. Em carta de 1930, Hermann Hesse encaminha o assunto de maneira mais inspirada. “As sabedorias e possibilidades de salvação não estão ai para serem ensinadas e também não para assunto de conversa, senão para aqueles a quem a água já chegou ao pescoço”. Não é um tema para ser meditado na Semana Santa, mas uma realidade a ser percebida quando o homem se dá conta do que significa perceber, e das implicações que isso certamente tem em sua vida. A palavra salvação está suficientemente comprometida com um dilúvio de afirmações desencontradas, para merecer algum crédito. Melhor é falar em conhecimento, a abordagem de alguma coisa que não conhecíamos anteriormente. Quando se faz disso um passatempo, uma ocupação de pessoas pretensamente inteligentes, resta muito pouco a descobrir. Aquele “desenho coerente” que podemos encontrar no mosaico da vida está intimamente ligado com o que somos. Jorge Luiz Borges tem uma pequena história que usa a mesma analogia: um pintor tenta condensar num imenso painel o mundo, e ao fim do trabalho, quando se distancia para observar o conjunto, descobre que desenhou o próprio rosto. Seria mascarar a realidade dizer que existe um preparo para essas descobertas, qualquer coisa como uma iniciação. Quando a “água já chegou ao pescoço” de alguém, isto é, quando todas as ilusões foram gastas e nem mesmo a desilusão (essa manifestação vaidosa do cansado) permanece, há como que um vazio profundamente criativo. Esse é o ponto, e tudo que se pode dizer dele é quea idéia de fazer alguma coisa, de prosseguir segundo um método, morre ali. A carga mais pesada de que falava Nietzche deixa de existir. Nada disso, como em geral todo o resto, é definitivo e estável. Se o velho Adão recobra o fôlego e tenta uma classificação inteligente, não há vazio nenhum na medida em que há alguém tagarelando. A linha de pensamento a que estamos habituados tem uma porção de objeções a opor, a essa altura: em que consiste tudo isso? Para quê? Por que complicar as coisas? Por que não fazer uma exposição simples e metódica do assunto? “Segundo a minha experiência – afirma Hermann Hesse, numa de sua cartas – o elemento mais irritante e destruidor dos homens é aquele impulso baseado na preguiça de pensar e na necessidade de permanecer em paz, que leva para o coletivo, para a explicação racional, para a vulgaridade subordinada à dogmática rigorosa, seja ela política ou religiosa”. O hábito precisa ser entendido, em seu mecanismo implacável, para que seja possível vislumbrar um pouco além do cotidiano. As exposições racionais e metódicas valem para uma infinidade de circunstâncias e são de imensa importância na vida, mas nos casos em que o racionalismo e o método transformaram-se em biombos, escondendo a realidade em nome da busca dessa realidade, tudo muda de figura. A técnica, a cultura, o conhecimento acumulado são pouco ágeis e sutis para um empreendimento tão delicado quanto à abordagem do real, nesse “fio da navalha” que é o momento presente. Não há retórica na conclusão de que essas descobertas só podem acontecer agora – não ontem, nem dentro em pouco. O fio do momento que passa (e que ainda não passou) existe entre duas vertentes e é o único pedaço do tempo que conhecemos de fato. O que as escolas e correntes dizem disso pode ser interessante, mas desvia atenção do assunto e “verbaliza” ainda mais o pensamento. Não há nada que a erudição possa fazer para ajudar, no caso, mesmo porque ela costuma ser prolixa, principalmente quando usada como alavanca nos truques de auto-afirmação. Essa é a carga mais pesada porque exige resistência e leveza, que freqüentemente se excluem. É preciso resistir ao peso dos hábitos mentais, do costume social, dos modismos de todo tipo, sendo ao mesmo tempo flexível como um florete, e penetrante como ele. Há preconceitos demais cercando o simples e o fundamental em nossa vida comum. Temos o espírito vergado para direções eterminadas e quanto mais antiga a pressão, pior a luta para identificar o desvio. Não se trata de corrigir, mas de identificar. A isso seria possível chamar de “revolução mágica”, se a expressão não fosse muito publicitária: o conhecimento modifica em profundidade. São João Evangelista disse isso de um modo, Freud de outro. Os preconceitos que cercam o simples e o fundamental são gerados pela ignorância. Não pela falta de dados acumulados – que isso qualquer computador pode fazer e nem por isso é sábio -, mas pelo desconhecimento do emaranhado de causa e efeito em que vivemos, em meio ao qual pensamos ser perfeitamente lógicos e racionais."

Luiz Carlos Lisboa

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