segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O ANTROPÓFAGO

Giovanni Papini

Pedi amor aos contemporâneos? O amor não se pede, mas se ganha, às vezes sem merecimento e, quando não se ganha, metade da culpa é de quem não é amado. Os pouquíssimos que me amaram, amaram-me até demais, em todo caso muito mais do que merecia a minha soturnidade. Portanto não me queixo. E não se queixam também aquêles temerários que souberam encontrar – milagres da ousadia! – um pouco de doçura sob a casca espinhenta.

E nem pedi justiça, pois na terra pertence ao tempo e em todo o lugar a Deus sòmente. Não conheço a estratégia dos astutos que sabem rogar e captar benevolências úteis e as indulgências. Não pratico a engenhosíssima contabilidade de certos emprestadores espirituais, habilíssimos em administrar a própria fama como um patrão avaro administra suas magras terras. Não sei tirar lucro de minhas afeições naturais, ignoro a arte dos feitores infiéis e cultivo, pelo contrário, com sorte inaudita, as inimizades dos califas do dia. Se de vez em quando fizeram-me um pouco de justiça é bondade exclusiva dos bons: o meu consôlo foi tanto maior quanto mais raro.

Não gemo e não grito, portanto, se os meus contemporâneos me grudaram nas costas, como asas de morcêgo, duas lendas paralelas que me ofendem. Disse que não gemo; não posso dizer que goste. Aceito êsses malignos apêndices como castigo antecipado de outras culpas de que não me acusam e talvez mais graves; aceito-as quase de boa vontade se pensar que são, normalmente, o acompanhamento e a pena da fama. O homem de gênio é aquêle inteiramente consciente do seu não-ser gênio; e só as injúrias, os escárnios, as calúnias, a sanha dos inimigos (e também dos amigos) o consolam, no seu desespêro, assegurando-lhe que, mesmo não chegando àquela grandeza que sente, está pelo menos um pouco acima daqueles que o rodeiam. E isso, para mim, é soberba, mas seria ainda mais soberbo se fingisse parecer mais humilde do que eu realmente sou. Quando me comparo aos grandes e especialmente àquela alta e total perfeição que às vêzes fulgura diante de mim, jogo-me ao chão e sinto não ser mais do que um farrapo enlameado. Quando me comparo aos outros, especialmente a certos insetos que cospem no prato onde comeram, então um demônio pior do que o pesadelo me instiga assim: “Deixe que façam e digam, pois você não é nem o último nem o penúltimo e com tôdas as pedras que lhe arremessam êsses tais inocentes você poderá sempre erguer um belo túmulo.” Neste caso leio um capítulo da Imitação ou um canto da Comédia e salvo-me da melhor maneira possível, até outra ofensiva.

O homem, por natureza indolente, e tendo que, em nossos tempos, cuidar de inúmeras coisas, tem o mau costume – absolutamente não filosófico – de reduzir tôdas as pessoas a uma ou duas características fixas, que nem sempre são as mais marcantes. Para êles o leão é maxilar, o burro orelhas, a águia bico e assim por diante. Dêste modo, para só falar dos modernos, Carducci era um bêbado que rugia, Pascoli um lagrimatório para tentilhões, Oriani uma tempestade de retórica, Fogazzaro um carola de alcova e um D. João de sacristia.
A mim deram a honra de epigrafar-me canibal e girândola. Se dermos ouvidos aos discursos de certos consertadores de consciências, eu seria o mais voraz antropófago que se salvou das carabinas dos civilizadores. Ou melhor, um Morgante exterminador e esfolador que abre caminho e massacra a todos com uma caneta mergulhada no curare ou no ácido prússico. Se lhe dermos ouvidos, depois da minha passagem a literatura universal assemelha-se à carnificina de Roncesvales, e a filosofia aos campos Catalaunos. Hércules com a clava, Polifemo com o rochedo, Sansão com o maxilar de um burro, nada são comparados a mim. Sei apenas conjugar o verbo “decepar” e da minha bôca só saem víboras e chamas.

De nada me vale dizer que dessa maneira tornam-me mais forte do que sou e que arriscam aumentar o meu orgulho (aos assaltos de um cachorrinho ninguém liga); não me adianta apontar que nos meus livros há talvez mais mel do que vinagre, mais carícias do que tapas, e não sabem ou não lembram ou fingem não saber e não lembrar que é por minha causa se alguns hoje são mais familiares e mais acatados do que eram, e que me empenhei, e mais no comêço, para fazer conhecer os obscuros e negligenciados, para soerguer os desprezados, para tomar a defesa dos fracos. Nem o afeto, a admiração, a saudade dos amigos me valeram para atenuar a condenação, e nem ter eu consagrado os dois livros por mim compostos com mais amor, um ao agradecimento de um poeta, outro à celebração de um Deus. Aquêles que dispensam a uma dócil clientela as suas mornas lavagens de morna sabedoria, e nunca tiveram fogo para queimar os ídolos, lembrem, se quiserem, a antiga experiência, ainda hoje possível de ser repetida, que ensina que os mais amorosos são os mais furiosos e que não é capaz de amar quem não sente de vez em quando a vontade de morder. Lembrar as cordoadas de Jesus nos mercadores ou as críticas violentas de Dante até lá em cima das esferas do Paraíso, seria sacrilégio, mas também aqui embaixo, no nosso mundo de mesquinhos, exemplos semelhantes são tão abundantes como as flôres-de-lis no trigo de maio. Mas querer desiludir êsses meus batizantes é como querer lavar um prêto com a lixívia: animal feroz pareço e animal feroz serei. Na fauna de certos lugares, melhor ser lôbo do que lêsma.

Não penso em negar e reconheço que negar seria impossível, que já agarrei e caluniei alguns de meus semelhantes, e pode ser que algumas vêzes tenha ultrapassado os têrmos da discrição e da justiça como muitos outros ultrapassam, a cada nascer de sol, os têrmos da bajulação e da vileza. Mas sempre isso me acontece por muito amor à arte ou àquelas que a mim pareciam ou parecem leis da verdade e honestidade; nunca por ódio às pessoas ou por desejo de escândalo lucrativo ou sujeiras parecidas. E quero também dizer isto: jamais assaltei alguém por quem no íntimo não provasse uma certa estima e até simpatia: tanto que, acabando o desabafo, parecia-me amá-lo mais do que antes e mesmo podê-lo admirar naquilo que êle tivesse de bom, com maior liberdade. Os outros, porém, não são obrigados a conhecer êste meu sentimento e comento-o só para aquêles que recolhem observações sôbre o misterioso emaranhado que é o coração humano.

Em todo caso, pareceu-me sempre que enfrentar de frente e em público os que julgamos falsos ou perniciosos seja infinitamente menos torpe do que agredi-los, como faz a maioria das pessoas, pelas costas, com opiniões mais atrozes do que as minhas públicas, e pronunciadas, às vêzes, pelos mesmos lábios que no dia anterior trilaram a serenata debaixo das persianas do semideus ou semi-homem que seja.

Das minhas quartãs de ferocidade acuso-me agora diante de todos, também se algumas vêzes não foram injustas nem inúteis; também se foram acompanhadas e superadas por febres de afeto. E daqui por diante, quando me der o prurido de repreender alguém, contentar-me-ei em copiar algumas páginas dos Profetas ou os discursos de Jesus contra os Escribas e os Fariseus. Mudando um ou outro nome, o resto serve muito bem ainda hoje.

Nenhum comentário: